A despedida de Mianmar faz-se na antiga capital do último reino independente birmanês (1860-1885), antes da colonização britânica – Mandalay. A cidade fica nas margens do rio Irrawaiddy e com a conquista britânica de Burma perdeu importância comercial e tornou-se, no essencial, centro da cultura birmanesa, do conhecimento e da espiritualidade budista. Entre as duas guerras estabeleceu-se na cidade um foco de resistência antibritânico e em 1942 a cidade foi invadida e arrasada pelos japoneses. O Palácio Real tornou-se o centro nevrálgico do domínio nipónico – que viria a ser totalmente destruído pelo bombardeamento aliado de 1945. Só em 1990 se procedeu à reconstrução do imponente palácio, que hoje voltou a ser uma das referências da cidade. Cerca de 30 a 40 por cento da população é de origem chinesa, proveniente de Yunnan, a região que faz fronteira com Mianmar. A manhã de sábado, dia 5, é ocupada com o contacto com a cidade, que há muito sofre com o facto de Rangum ter-se tornado o epicentro económico do Estado. Os pagodes de Kuthodaw e Kyauktawgyi e o Templo budista chinês são marcos da cidade. Faz-se a visita à imponente Catedral do Sagrado Coração (de 1898), sede do arcebispado, de que é titular Monsenhor Nicholas Mang Thang, onde se vive um intenso diálogo inter-religioso, envolvendo cristãos, budistas e muçulmanos, até pela reduzida dimensão da influência cristã, em obediência a um clima aberto de respeito mútuo e de compreensão, numa cidade que cultiva a espiritualidade. O Padre João Baptista, descendente de portugueses, invoca com emoção este encontro. Em frente da casa onde viveu George Orwell, como funcionário de S. M., há ainda tempo para algumas fotografias.
O voo da Bangkok Airways deixa, com várias horas de atraso, devido a uma aborrecida avaria, Mandalay e Mianmar, mas no essencial são boas as recordações, uma intensa História para lembrar e um inesquecível poema de R. Kipling. No caminho para a Tailândia rememoramos a riqueza religiosa e cultural, arquitetónica e artística dos povos da Birmânia. O birmanês faz parte das línguas tibeto-birmanesas, um subgrupo da família sino-tibetana. O alfabeto birmanês deriva, como sabemos (desde Anawrahta, no século XI em Bagan), do alfabeto mon, que por sua vez vem do alfabeto brahmi. Veremos como tudo é diferente na Tailândia… Se é certo que pode haver um parentesco entre as línguas de Mianmar e de Sião, podendo ambas ser sino-tibetanas, a verdade é que na escrita e no falar as diferenças são profundas. O tailandês faz parte das línguas «kradai», que, vindas da China, têm fora dela um desenvolvimento independente. Se há palavras semelhantes às sino-tibetanas, talvez isso aconteça por influência externa, e não por raízes próximas comuns… Voltaremos ao tema. Em Mianmar há diferenças entre a língua coloquial e a língua culta e escrita, verificando-se uma tensão entre as duas formas. Hoje o dialeto padrão é o de Rangum, mas até ao século XIX prevaleceu o de Mandalay, mais exigente e requintado. Na história da língua, nota-se a evolução do país. A evolução do birmanês divide-se em três momentos – o antigo, o médio e o moderno. O antigo data dos séculos XI a XVI, durante as dinastias Bagan e Ava (Innwa), o médio é o dos séculos XVI a XVIII (com as dinastias Taungoo a Konbaung – que corresponde ao período de contacto com os portugueses) e o moderno corresponde de meados do século XVIII à atualidade. Os períodos são marcados pelas mudanças da dominante geográfica, e são definidos na evolução da língua por alterações ortográficas, mas não fonológicas ou sintáticas. Para os investigadores, a Pedra de Myazedi (1113), sobre a história do rei Kyanzittha, tem uma grande importância, pois aí são usadas quatro escritas diferentes: pyu, mon, páli e birmanês. Fica a demonstração clara e prática de que Mianmar é o produto de um «puzzle» ou de um caleidoscópio de diferentes sensibilidades étnicas e geográficas.
Guilherme d’Oliveira Martins