Todas as viagens são mágicas, mas algumas têm um maior encanto. Falo de Sião e de Sirião, da Tailândia e de Mianmar, que atraiu especialmente os portugueses ao longo dos séculos. Fernão Mendes Pinto, sobre Sião, disse haver neste reino «muita pimenta, gengibre, canela, canfora, pedra-ume, canisfistula, tamarinho e cardamomo em muita grande quantidade de maneira que se pode dizer e afirmar com verdade (…) que é este um dos melhores reinos que há em todo o mundo»… Como dizer mais e melhor? Em mais uma peregrinação de «Os Portugueses ao Encontro da Sua História» do Centro Nacional de Cultura, vamos ao encontro dessas paragens que tanto entusiasmaram o nosso multifacetado guia de quinhentos.
Comecemos por Rangum, a maior cidade de Mianmar, a ancestral «cidade sem inimigos» (yan, significa inimigo, e koub, fugir de). Foi fundada provavelmente no século VI da nossa era, sendo uma aldeia de pescadores em torno do pagode de Schwedagon. Estamos no ponto que lembra António Correia (que chegou a Pegu em 1519) e foi celebrizado por Filipe de Brito e Nicote (c. 1566-1613), português que chegou a ser proclamado rei do Pegu ou de Sirião (Thanlyin), conhecido tradicionalmente como Nga Zingar. Em 1590 encontramo-lo já na região como comerciante de sal na ilha de Sundiva e depois ao serviço do rei de Arracão (hoje Rackine, cuja capital é Mrauk-u). No complexo xadrez político de Sirião, Filipe de Brito com Salvador Ribeiro de Sousa, cavaleiros-mercadores, irão intervir nos conflitos em que tais povos eram pródigos. E obtendo vencimento a causa que apoiaram, Filipe de Brito aconselha o rei a construir uma casa de Alfândega para aumentar as rendas do comércio no Pegu. Não foi, porém, fácil ao português obter a influência que desejava junto das autoridades, tendo conseguido, porém, chegar ao seu intento, depois de muitas vicissitudes, ódios e combates, o que lhe permitiu tomar Pegu com forte apoio dos naturais que lhe chamaram Changá, que significa «Homem Bom», proclamando-o Rei… Pelos serviços prestados, Filipe II concedeu armas a Filipe de Brito e Nicote, designando-lhe como solar, o próprio castelo de Serião… No entanto, em 1613, os birmaneses tomariam a praça e Filipe de Brito seria morto.
O antiquíssimo reino de Sião (que F. Mendes Pinto tanto elogiou), esse é um dos marcos fundamentais das relações de Portugal com o Oriente. Depois da conquista de Malaca em 1511, Afonso de Albuquerque cedo estabeleceu relações com o prestigioso reino, através de Duarte Fernandes, enviando depois um Embaixador a Ayuthia, António Miranda de Azevedo, que foi recebido pelo próprio rei de Sião, que lhe mostrou um magnífico elefante branco e o presenteou com uma coleção de sinos. Em 1544 quando já havia comércio com portugueses vindos de Goa, de Malaca e da Malásia, o rei ter-se-á feito batizar cristãmente…
Sabemos, segundo Martim Afonso de Melo e Castro, através de carta ao Rei de Portugal em 1565, que havia dois mil portugueses a viver no Oriente, na China, Pegu, Bengala, Orissa e Sião. Um século depois, encontramos uma população portuguesa estabilizada no «bandel» (Bang Portuguet) de Ayuthia de cerca de duas mil almas, num termo que tinha sido concedido pelo Rei de Sião, onde havia livre prática religiosa e isenção de alguns tributos mercantis. Essa comunidade encetou um processo de miscigenação com siameses, chineses, peguanos e japoneses. E assim os luso-descendentes exercerão funções de intérpretes e de funcionários administrativos ao serviço do Rei de Sião. As comunidades portuguesa e japonesa da Ayuthia eram tão próximas que D. Maria Guiomar, uma luso-japonesa terá uma grande notoriedade e influência, ao casar-se com o grego Cristóvão Falcão, que foi Primeiro-Ministro do Reino do Elefante Branco. A presença religiosa iniciou-se em 1565 com a chegada de dois frades dominicanos, seguindo-se em 1584 os franciscanos e em 1606 os jesuítas. Quando as relações entre Portugal e o Japão entraram em decadência, houve tentativas infrutíferas para os mercadores portugueses recuperarem uma presença seriamente comprometida, através da mediação e de um entendimento com Sião. No entanto, através de Macau houve passos muito importantes para a sustentabilidade da comunidade luso-siamesa, o que permitiu que os mercadores portugueses mantivessem influência económica e política em Sião. As comunidades do Bairro do Rosário, da Conceição e de Santa Cruz mantiveram-se graças à coesão religiosa e ao comércio interasiático que teve como centro de gravidade a presença das comunidades de luso-descendentes, desde Malaca às costas da China, tendo o Reino de Sião tido um papel mediador importante.
A feitoria portuguesa (edifício da Embaixada portuguesa foi construído num terreno cedido em 1820 – ano de importante Tratado luso-siamês – pelo Rei de Sião) e as igrejas do Rosário, da Conceição e de Santa Cruz em Banguecoque e de S. Domingos em Ayuthia são reminiscências desse património cultural que a memória traz até nós. Eis os muitos motivos que acrescentam as razões de Fernão Mendes.
Guilherme d’Oliveira Martins