OS VALORES ENRAIZADOS NA SOCIEDADE
Conheci Jacques Delors fora das andanças europeias, no campo da militância social, na linha do «compromisso político» de Emmanuel Mounier. Na última vez que nos encontrámos, na Fundação Calouste Gulbenkian, falámos da importância nos dias de hoje desse empenhamento cívico e pessoal, para além dos debates puramente técnicos, a propósito do livro que lhe é dedicado de Guy Coq «Mounier – O Compromisso Político» (Gradiva, 2012), que traduzi e prefaciei no Brasil e em Portugal. Delors acaba de completar noventa anos de idade e de ser homenageado com o maior galardão da União Europeia. Houve um estranho silêncio, que importa romper. É uma memória viva que urge honrar, até para que se compreenda que o projeto europeu tem sido para si a convergência atuante entre a liberdade, a justiça e a paz. Ao antigo Presidente da Comissão Europeia aplica-se plenamente o que se disse no pórtico desse livrinho: «os valores não são (…) ideias gerais ou desenraizadas – “são fonte inesgotável e viva de determinações, exuberância, apelo irradiante: como tal revelam uma como que singularidade expansiva e uma proximidade com o ser pessoal, mais primitiva do que o seu deslizar para a generalidade”». Delors continua ativo e preocupado, teme neste momento pelo futuro de uma Europa de paz. Por isso, a melhor homenagem que lhe podemos fazer é refletir sobre o nosso futuro.
A DUPLA LEGIMIDADE EUROPEIA
A dupla legitimidade europeia está bem à vista de todos, a propósito da chamada crise grega. A democracia europeia é de um tipo novo, dispondo de elementos complexos, que se encontraram noutros momentos históricos, mas que agora aparecem compostos de modo inédito. Dir-se-ia que, neste ano da celebração da Magna Carta (1215), não devemos esquecer Montesquieu e Tocqueville. A democracia precisa de equilíbrio de poderes, de vontade e eficiência. Sejamos claros: não há nação europeia, a legitimidade originária está nos Estados-membros, os poderes comuns devem ser expressamente outorgados e aceites num processo formal e expresso de partilha de soberanias e de atribuição de competências. Mas há questões fundamentais e de sobrevivência, ligadas à paz, ao desenvolvimento e à diversidade cultural que correspondem a um conceito, ainda muito frágil (mas essencial) de interesse vital comum. Daí a necessidade de assumir, com todas as consequências, a noção de legitimidade complexa: dos Estados e dos cidadãos, mas também entre os diversos Estados, os vários cidadãos e os respetivos interesses nacionais. Daí a necessidade de um Senado europeu (de representação igualitária) ao lado do Parlamento Europeu. Não esqueçamos que a noção atual de soberania está muito distante do que foi nas suas origens ou com Bodin, estando hoje plasmada na Carta das Nações Unidas (em especial no tocante às questões da guerra e da paz), mas também no Tratado da União Europeia ou na Convenção Europeia dos Direitos Humanos – o que exige o desenvolvimento da noção de democracia supranacional, a qual apenas pode afirmar-se plenamente se a legitimidade envolver os cidadãos, motivando-os e suscitando a sua participação e representação. Aliás, se os novos movimentos sociais (de cariz muito diverso) estão a emergir é porque os partidos políticos tradicionais são chamados a reformar-se, sob pena de deixarem de ser representativos. De facto, estamos numa encruzilhada em que a representação e a participação têm de se ligar, para que o cidadão comum sinta, de facto, que é relevante e útil. O «pensar global / agir local», a exigência de salvaguardar a subsidiariedade ou a consciência de uma ecologia integral são pontos de partida para a coerência cívica e para a necessária articulação cidadã entre a democracia local, a democracia nacional e a democracia supranacional.
UM PROGRAMA PARA O FUTURO
Nesta ordem de ideias, as fragilidades sentidas no projeto europeu não são conjunturais, momentâneas, ditadas por esta crise financeira, pelos problemas da dívida soberana, pelo euro, ou por uma convergência meteorológica adversa. Se insistimos na ideia de dupla legitimidade é para dizer que é a legitimidade dos cidadãos que está na ordem do dia. Olhemos em volta e verifiquemos o porquê das coisas: (a) os meios orçamentais europeus são insuficientes para realizar a coesão económica, social e territorial; (b) as desigualdades agravam-se e há excedentes comerciais dos mais ricos, que aumentam as injustiças e a ineficiência; (c) a União Económica e Monetária está incompleta por falta de dimensão económica e social (como Delors assinalou desde muito cedo); (d) o desemprego e as necessidades de investimento continuam a ser, na prática, subalternizados; e (e) a coordenação política, em termos de interesses vitais comuns, continua manifestamente deficitária. Jacques Delors, Pascal Lamy e António Vitorino defenderam, há pouco, que a União Europeia deveria ter um papel ativo na reconstrução grega, propondo um plano de conjunto com três componentes: uma ajuda financeira razoável para o país restaurar a sua solvabilidade a curto prazo; a mobilização de instrumentos comunitários para reanimar a economia grega, de modo a reduzir o peso da dívida pública, quer para Grécia quer para os restantes membros, devendo colocar-se na ordem do dia um exame global do peso da dívida pública, para encontrar soluções comuns. Como dizem os autores do texto, saído no «Le Monde», (6.7.15), «só um tal plano global pode permitir abrir perspetivas de esperança para o povo grego e suas autoridades e levá-los a comprometer-se num esforço de reconstrução do país, de que todos beneficiarão».
UMA QUESTÃO POLÍTICA E CÍVICA
Não se trata, pois, do problema grego e apenas da consequência dos eventuais erros dos governos helénicos, mas da exigência de uma nova atitude europeia. Não esqueçamos as consequências geoestratégicas de uma qualquer solução de saída da Grécia do Euro («Grexit») e o inevitável efeito de contágio para todos os países europeus do Mediterrâneo. Impõe-se um alerta permanente. Quem encarar o tema como se fosse um «fait-divers», engana-se rotundamente. Talvez a Grécia não devesse ter entrado no Euro no momento em que o fez, sem cumprir os requisitos mínimos. É um tema do passado. O certo é que a consequência sistémica de uma saída agora teria resultados desastrosos para todos. Eis por que razão as legitimidades europeias devem ser chamadas à ribalta. Trata-se de cumprir a vontade soberana dos povos e dos cidadãos, assegurando que esta se articula gradual e seriamente com a legitimidade dos diferentes Estados-membros, cujos cidadãos serão chamados a uma decisão responsável e solidária. Delors tem insistido na concorrência que estimula, na cooperação que reforça e na solidariedade que une. É uma Europa de paz e de sentido político que está em causa. É a História que não pode ser esquecida.
Guilherme d’Oliveira Martins