A Vida dos Livros

De 15 a 21 de Junho de 2015

«Diálogo entre o Autor e o Crítico» (Editorial Presença, 2015) de José-Augusto França é uma boa surpresa. E Hélder Macedo é claríssimo no reconhecimento: «Este “Autor” que é também “Crítico” encarrega-se de facultar aos leitores as necessárias informações sobre a sua obra literária e, consequentemente, sobre si próprio.

JACOB E O ANJO
A ilustração da capa é significativa, Jacob luta com o Anjo, na interpretação de Delacroix na igreja de Saint-Sulpice de Paris. E, lendo o diálogo que o livro contém, descobrimos em Israel, o vencedor do anjo, o Autor e na misteriosa figura alada o Crítico. Acontece que neste livro os dois antagonistas são uma e a mesma pessoa, que usa a lucidez (citando de quando em vez os críticos que falaram ou escreveram, como Ernesto Rodrigues tantos outros) para nos revelar uma vocação romanesca, assente numa serena erudição, natural, agradável e sempre pedagógica… E que bom seria se outros escritores também o tivessem feito. Porque raras vezes terá havido um escritor que tão detalhadamente se revele como ele». É verdade. Mas estamos diante de um especialíssimo Autor, que tem experiência bastante para se colocar nos dois pratos da balança – uma vez que fez ofício de vida a realizar a crítica, como historiador de arte de primeira água, tendo-se assumido como ficcionista em continuidade e coerência com o uso do bisturi analítico. De facto, vem a propósito, como faz o prefaciador, H. Macedo, lembrar Paul Valéry quando este diz que «um escritor clássico é um criador que contém em si um crítico que participa na sua criação». E em J.-A. França isso é por demais verdadeiro, porque sempre as duas qualidades de encontram em abundância na personalidade criadora do autor. E, assim, o melhor e mais original do que escreve em ficção não cabe nas coordenadas clássicas. Por exemplo, «A Bela Angevina» (2005) e «A Guerra e a Paz» (2009) tratam do que foi e sobretudo do que poderia ter sido. E o autor assume essa sua veia de procurar ir além do real, fiel a uma coerência que recorda as suas preocupações originais de alguém atento ao movimento e às inquietações existenciais.
 
OBRA CRIATIVA DE CULTURA PARTILHADA
Como ainda afirma o prefaciador: «num tempo de banalidades pseudoculturais esta é uma obra de criativa cultura partilhada como um valor comum e permanente. Oxalá todos deem por isso». E entende-se muito bem a epígrafe que o autor escolhe, do Padre António Vieira: «O livro sendo o mesmo para todos, uns percebem dele muito, outros pouco, outros nada; cada qual conforme a sua capacidade»… E não se pense que se trata de uma obra com chave acessível a muito poucos. Não. Mesmo que se não conheçam as obras de que o Autor fala, em diálogo com o Crítico, podemos usufruir uma reflexão muito útil sobre o ato criador, sobre como se constrói o mundo romanesco, contando com diversas matérias-primas, a começar na vida vivida e a continuar no legado que recebemos dos clássicos. Que é a criação senão contante recriação? E sente-se a importância do entretenimento na função criadora. Sim, a palavra entretenimento é pertinente nesta «grande tapeçaria de invocação tolstoiana», na expressão de Eduardo Lourenço, que refere a tentativa de um «retrato de uma longa vida enredada em labirintos e fantasmas e numa paixão pela mitologia cultural de um século de fascínios e horrores». Se houve neutralidade colaborante e não houve invasão, na segunda grande guerra, em Portugal, o certo é que tudo aquilo (que o romance documenta) poderia ter existido… E tal permite perceber o que aconteceu e não aconteceu depois… «Tudo é real, meu caro (diz o Autor), ou ficção, que tanto faz, na ilusão, em suma, de toda a literatura que se pratica! E os nomes das pessoas só, afinal, têm valor onomástico, nos sítios em que se encontrarem ou os ponham…».
Mas temos de ir atrás, até «Natureza Morta» (1949). Aí com Júlia, singular personagem feminina, o autor «experimenta (…) a expressão do moderno sentimento de angústia em interdependência com uma realidade quotidiana» (que Tomás Ribas notou muito cedo), numa espécie de «superação simultânea dos postulados estéticos do presencismo e do neo-realismo» (como verificou Miguel Real), quando também se poderia falar de influência das análises intimistas oriundas da «Presença», como fez o autor de «O Labirinto da Saudade»… «Mina e as Consequências» (2011) irá retomar o tema da mulher com especial cuidado e realce.
 
UM MUNDO ROMANESCO
E vêm-nos à memória as outras nossas heroínas do romance – a Luísa do Basílio, a Morgadinha dos Canaviais, a Margarida Dulmo de «Mau Tempo no Canal». Mas Maria Eduarda é talvez a única heroína do romance nacional, depois da «Menina e Moça» de Bernardim… Sendo marcante, Mina Van Ghel de J.-A. França, Urbano Tavares Rodrigues identifica-a com a aristocracia do Sentir e Eduardo Lourenço com uma beleza triunfante e natural. É o feminino singular. Por outro lado, há ainda o caso de «Azazel», experiência teatral (1956) – a fazer lembrar o «bouc emissaire» de René Girard -, de que Maria Helena Vieira da Silva gostou, ao contrário de Sena e Casais Monteiro, mas que José Blanc de Portugal melhor compreendeu («o comermos os nossos pecados convinha à sua profunda consciência católica – tanto quanto à minha, digamos, “existencial”»)… Muitos outros exemplos poderíamos dar. Percebemos, por exemplo, que em «A Bela Angevina» há a ilustração de que o romance entrecruza sempre a realidade e a imaginação. Aí se conforma, de facto, o nascimento de «Os Maias» (Ernesto Rodrigues dixit). E se Faulkner dizia que o romance por excelência era «Anna Karenina», J.-A. França não tem dúvidas em acrescentar, no caso português, que é de «Os Maias» que devemos falar. A encruzilhada aí está, gerando-se a complexidade e o carisma de Maria Eduarda. Campos Matos fala de processo de gestação da personagem. E assim Tolstoi está bem presente nos romances do Autor, onde porventura a sua força criadora melhor se manifesta. E se Eça é, naturalmente, referencial e histórico, Almada Negreiros (amigo do Autor) é protagonista contemporâneo de «José e os Outros» (2006), «um romance individual» ou «um romance social “dos anos vinte”, “janela sobre Lisboa” da época, como foi escrito, «ficção das (des)ilusões modernistas de 1920»… O livro quase passou despercebido, mas merece atenção primordial – respondendo o Autor que a razão de ser dele é uma justificação à Almada: 1 mais 1 =1, que poucos compreenderam. Fernando Pessoa não é subalternizado, o que se passa é que o fulcro está na teatralidade e na singularidade de Almada Negreiros, mestre da «Invenção do Dia Claro», que o Autor conheceu e de quem foi amigo (depois de uma célebre conferência no Centro Nacional de Cultura, pouco depois da fundação deste em 45). «Almada propõe-nos a clareza do “teleon”, o número perfeito dos Antigos, e em aforismos o exprime…Assim é o mito!». Em suma, dirá o Autor: «as personagens que encontrei ou com que me encontrei, mesmo que sejam “históricas” como Eça ou Almada, é a verdade delas que conta»…

Guilheme d’Oliveira Martins
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