A Vida dos Livros

De 27 de abril a 3 de maio de 2015

Alberto Vaz da Silva é autor de «O Pó do Espólio», um número especial precioso da revista «Egoísta», de Setembro de 2010, feito a partir do espólio de José Pacheco – no qual, pela Grafologia são analisados os protagonistas da geração de «Orpheu», cujo centenário assinalamos neste momento.

UMA GERAÇÃO SINGULAR
«Nós os três somos de Paris. E somos. Temos esta elegância, esta devoção, este farol da Fé». É Almada quem escreve a José Pacheko, referindo-se também a Mário de Sá-Carneiro. Sente-se uma pulsão antiga de uma parte da nossa intelectualidade (de Garrett à Geração de Setenta e por aí adiante…) de pôr Portugal ao ritmo do cosmopolitismo europeu. Por isso, a dissidência de 1915 da «Renascença Portuguesa» foi «dos portugueses que escrevem para a Europa»… «O artista e as artes são indicadores dos seus tempos». Na sua diversidade, «Orpheu» representa esse desejo moderno, assente nas afinidades eletivas de uma fecunda convergência de peculiares singularidades. Mas, pouco tempo antes, o autor da «Confissão de Lúcio» dissera a Pacheko: «Tenho tantas saudades da sua Alma – a sua Alma toda em Oiro! Que pena! Que pena! (…) Parece-me que já nem gosto de Paris. Não sei nada, nada, nada. Um grande vazio! Nunca me esqueço da sua Alma, do seu Espírito – de toda a criatura adorável que você é. Tenho tantas saudades da sua companhia». Os sentimentos são contraditórios e há uma força renovadora que se impõe. Se a escrita de Pacheko «é nervosa, convexa, com entrelinhas insuficientes, praticamente sem margens», revelando «o intelectual sensível e requintado que se eleva acima da confusão e da espuma dos dias», o seu amigo Sá-Carneiro tem uma «escrita de grande idealista de verbo inspirado». No entanto, a pouco e pouco, vemos «a instabilidade crescente da bela escrita clara de Sá-Carneiro». Indicia-se a «desnorteação da emotividade; gradualmente a escrita desarticula-se». E, num envelope, há um minúsculo e envergonhado nome de remetente, como «sigla pré-suicida afundada com uma mó ao pescoço». Há um «medo irracional da vida, um pacto entre viver e recusar fazê-lo» E «multiplicam-se as reticências, outras tantas vaguidões e incertezas, e a escrita, anunciando várias espécies de horrores, vai-se dissolvendo como se um ácido corrosivo a atacasse»… Como diz no poema «Dispersão» (que poderia ser súmula de toda a poesia de Sá-Carneiro): «Perdi-me dentro de mim / Porque eu era labirinto…».

O ANO DE «ORPHEU»
Na semana que passou, na Casa Fernando Pessoa, foi apresentado o volume organizado por Steffen Dix «O Ano do Orpheu, 1915» (Tinta da China), e José Manuel dos Santos recordou, bem a propósito, a passagem emblemática da introdução ao «Livro do Desassossego», na qual Fernando Pessoa fala desse homem que aparentava trinta anos, que ele passou a cumprimentar a partir da cena de pugilato presenciada por baixo da janela… «Falei-lhe da revista “Orpheu”, que havia pouco aparecera. Ele elogiou-a, elogiou-a bastante, e eu então pasmei deveras. Permiti-me observar-lhe que estranhava, porque a arte dos que escrevem em “Orpheu” sói ser para poucos. Ele disse-me que talvez fosse dos poucos. De resto, acrescentou, essa arte não lhe trouxera propriamente novidade; e timidamente observou que, não tendo para onde ir nem que fazer, nem amigos que visitasse, nem interesse em ler livros, soía gastar as suas noites, no seu quarto alugado, escrevendo também». O ano de 1915 foi, no caso português, pode dizer-se, o início do nosso século XX, na aceção do século curto de que fala Hobsbawm. Como se diz na obra de S. Dix, houve vários sinais que precederam «Orpheu» – e o próprio Fernando Pessoa, nas páginas de «A Águia» antecipou a ocorrência do singular fenómeno. Se dúvidas houvesse, basta ver a continuidade e as repercussões, os significados diferentes dos diversos protagonistas e contributos. De facto, «Orpheu» marca uma nova atitude – que tem de ser compreendida no seu carácter plural, complexo e polifónico. E se a revista apenas teve dois números (o primeiro com a capa da autoria de José Pacheco – cuja matriz se encontra no espólio do Centro Nacional de Cultura – e o segundo com a marca inconfundível de um verdadeiro ícone da modernidade portuguesa), a verdade é que a partir deles vamos encontrar inúmeros caminhos (que a «Presença» procurará transformar em «Literatura Viva») e que José Pacheko, na revista «Contemporânea» sintetizará na expressão: «uma revista feita expressamente para gente civilizada e para civilizar gente». É verdade que a arte dos que escreviam em «Orpheu» soía ser para poucos, mas essa circunstância é sempre válida para aqueles que anunciam inesperada e persistentemente caminhos novos. E, sobre influências britânicas, temos a lembrar a revista «Blast», sobre cujo conteúdo Brazska afirmou no sentido «vorticista»: «fomos influenciados por aquilo de que mais gostávamos»: «cada um de acordo com a sua própria individualidade», explicando a riqueza e heterogeneidade das colaborações da revista.  

A LETRA DOS INTERLOCUTORES
Alberto Vaz da Silva, no número de «Egoísta», percorre os protagonistas do espólio, sobretudo colaboradores de «Contemporânea». Mário de Saa: «É de um raciocínio espantoso, e duma inteligência assombrosa. Você Mário é um grande monumento» (escreve Pacheko). E a sua letra revela imaginação e inteligência, rescendendo originalidade… O original de «Exortação ao meu Anjo» de José Régio é um monumento grafológico. Quanto a Fernando Pessoa, «a escrita tão inclinada, tão ligada, tão rápida, tão combinada, com finais tão generosas, tão angulosa mas tão aberta e largada diz-me que há uma enorme bondade e nobreza, um sentimento de fraternidade universal no poeta da Mensagem». Amadeu de Sousa Cardoso exprime uma «natureza riquíssima, que sabia utilizar os sentimentos em vez de se deixar invadir por eles». António Botto assume-se «como obra de arte mas não no interior de si próprio…». Santa-Rita Pintor é um «temperamento apaixonado, combatente sem tréguas»… Leonardo Coimbra tem «uma grande escrita generosa de um filósofo que olha para o alto. Tudo é rápido, largo e ligado nesta expressão gráfica de uma inteligência percuciente». E sobre Carlos Queiroz, tão importante para que Fernando Pessoa se tenha tornado referencial aqui e além-fronteiras, temos a alusão à pintura de Eloy em ligação com as escritas do poeta em momentos diferentes: «Mário Eloy captou magistralmente o admirador de Mallarmé, Valéry, Rimbaud e Verlaine, que viveu os seus apenas 42 anos como que através de um espelho, secretamente, o que o fundo da pintura reflete, fechado no coração da para si mágica Lisboa: “ver só com os olhos é fácil e vão / por dentro das coisas / é que as coisas são”»… Em suma, com «Orpheu», a tendência modernista (diz José Carlos Seabra Pereira) ofereceu aos meios literários portugueses a oportunidade, única e quase sempre desaproveitada, para uma receção inovadora de autores remanescentes do decadentismo e do simbolismo (como Luís de Montalvor), já muito contaminados pelo neorromantismo (Augusto Ferreira Gomes) ou prontos a nele se integrarem plenamente uma vez transcorrida a experiência de «Orpheu» (como Armando Côrtes-Rodrigues). E assim se abriram novas perspetivas e movimentos, heterogéneos e paradoxais, que chegam ao nosso tempo.
 
Guilherme d’Oliveira Martins
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