UMA IDENTIDADE ABERTA E PLURAL
Por Guilherme d’Oliveira Martins*
«A identidade nacional, tal como existe hoje, resulta de um processo histórico que passou por diversas fases até atingir a expressão que atualmente conhecemos» – disse José Mattoso, por certo o mais lúcido analista da identidade portuguesa.
E a verdade é que a permanência do território europeu e das suas fronteiras, ao longo dos séculos, bem como a importância de uma língua antiga, com projeção intercontinental, falada por mais de duzentos milhões de falantes constituem duas características importantes que devemos lembrar.
Temos as fronteiras estáveis mais antigas da Europa, somos a terceira língua europeia mais falada no mundo e o idioma mais usado no hemisfério sul. No entanto, como tem sido salientado pelos estudiosos da questão portuguesa, a nossa identidade tem-se afirmado ao longo dos tempos, desde o século XII, a partir da sua capacidade de se enriquecer através do contacto com outras identidades e outras culturas.
A cultura portuguesa sempre se tornou mais rica, abrindo-se, dando e recebendo. Formámo-nos como um cadinho de diversas influências – a partir dos vários povos que foram chegando à finisterra peninsular e se misturaram. E essa qualidade de receber e de se relacionar permitiu, a partir do século XV, a gesta de ir à descoberta de outras terras e outras gentes.
Há, assim, um enigma bem presente, que é o de tentar saber por que motivo fomos mar adiante – a «dar novos mundos ao mundo». E se Eduardo Lourenço fala de uma superidentidade, di-lo como uma espécie de compensação, de quem vive dividido entre a recordação histórica de velhas glórias e a consciência presente de dificuldades e limitações.
Por isso, os nossos mitos tornam-se importantes, não para explicar, mas para cuidar da sua crítica para obter a respetiva superação.
Jaime Cortesão falou do «nosso» humanismo universalista de fundo franciscano, para significar que a dignidade humana está no centro da nossa «aventura».
S. Teotónio, companheiro de D. Afonso Henriques e alma dos cónegos regrantes de Santo Agostinho, de Santa Cruz de Coimbra, criou um centro erudito, animado pelo riquíssimo diálogo mediterrânico, renovador do pensamento europeu.
Santo António de Lisboa, discípulo de Santa Cruz e companheiro do Pobre de Assis contribuiu decisivamente para renovação teológica e cultural do franciscanismo na Europa e no mundo.
Gil Vicente, Sá de Miranda e Camões usaram o tempo e o espírito para pôr a tónica nesse universalismo de ideias e valores. E o Padre António Vieira tornou as «Trovas» de Bandarra uma chamada a um desejo vivo e não morto, transformando a lembrança funesta de Alcácer Quibir num apelo de renascimento e restauração.
No entanto, era mais fácil a invocação de um encoberto morto, com raízes fundo celta, trazido da noite dos tempos do ciclo bretão e dos cavaleiros da tábua redonda.
Daí a ciclotimia que ainda nos distingue – entre momentos altos e baixos, entre o mistério da história e a dura tomada de consciência das fragilidades, que Alexandre O’Neill resumiu: «Portugal: questão que eu tenho comigo mesmo, / golpe até ao osso, fome sem entretém, / perdigueiro marrado e sem narizes, sem perdizes, / rocim engraxado, / feira cabisbaixa, / meu remorso, / meu remorso de todos nós».
O atual tempo de crise leva-nos a lembrar uma ancestralidade, que obriga a superar o «país sonâmbulo», que Miguel Real recorda, bem como o prefaciador da obra, José Eduardo Franco: a história antiga; o amor-próprio; a sede arreigada de independência; os nove séculos de dificuldades e de vontade; a capacidade de manter uma identidade aberta; a recusa do fatalismo da mediocridade; o sentido crítico que permite ir à luta e não desistir; a consciência dos defeitos e a tentação do ilusório sonho; a contradição de nos acharmos os melhores ou os piores e o sentido trágico que leva à permanência, apesar de tudo.
No entanto, estes elementos têm de ser vistos num percurso lento e complexo. Fernão Lopes retrata os alvores da realidade dos portugueses como projeto próprio de autonomia e emancipação, para além do reino político.
João de Barros, nas «Décadas», encontra pela primeira vez os portugueses no mundo.
«Os Lusíadas» e Camões apresentam a nossa história como uma epopeia digna dos clássicos.
Fernão Mendes Pinto ligou a aventura e o drama, o picaresco e a história.
A restauração de 1640 obrigou a consolidar a herança histórica própria. O quinto império abriu caminho à consideração do universalismo da dignidade humana, até que os últimos séculos foram afinando a «arte de ser português», agora, mais uma vez em encruzilhada decisiva. E a vontade, como afirmou Alexandre Herculano, tem tido um papel decisivo. «Somos porque queremos». Eis um motivo de esperança e de sentido crítico.
«Se a Europa é o lugar natural de Portugal, o seu lugar histórico é, hoje, a lusofonia (…). Os Descobrimentos fizeram-nos, constituíram o nosso tempo de adultos históricos, selaram a nossa identidade nacional. (…) Neste sentido, (continua Miguel Real) devemos sempre juntar ao nosso lugar natural (a Europa) o nosso lugar histórico (a lusofonia), este atualmente mais importante do que aquele, porque conquistado e realizado com sucesso».
E diga-se, em abono da verdade, que o europeísmo de que Eduardo Lourenço tem falado e cuja crise profundamente o preocupa não é concebido doutro modo – Portugal é Europa e é universalismo.
Lorenzo Natali sempre afirmou que Portugal na Europa traria sempre a sua história, e o cosmopolitismo somar-se-ia ao universalismo. «Deste modo, o máximo de recursos possíveis dos países lusófonos deve ser vazado na educação e na cultura, pondo a tecnologia ao serviço destas e não o contrário, como a Europa tem feito, desenraizando de valores comunitários o atual homem europeu, um homem tecno-burocrata».
E, em síntese: «finalmente, a comunidade lusófona deve constituir um espaço de paz absoluta sob tripla garantia: a da inexistência de guerra entre os seus membros; a da inexistência de guerra no interior do território de cada membro e a da defesa comum, caso um dos seus membros seja atacado.
Neste sentido, o regime democrático, por mais imperfeito que seja, deve ser considerado a configuração política constitucional do Estado entre todos os membros da comunidade, obstando à substituição do poder por via militar» (M. Real).
A reflexão obriga, no fundo, a ligar uma identidade aberta e uma ligação generosa de caminhos independentes e complementares, sem paternalismos nem saudosismos.
A lusofonia é uma teia complexa de diferenças. E, como disse Vieira na sua «Clavis Prophetarum» é uma prefiguração do respeito inteiro pela eminente dignidade de todas as pessoas.
Falar da identidade e da língua é invocar, antes de tudo, a responsabilidade da cidadania. Não há cultura viva sem o envolvimento dos cidadãos.
Daí a importância da mobilização de todos em torno do estudo, da investigação, da divulgação, da cooperação científica e académica, da partilha de informações, da proteção do património cultural e da utilização adequada de recursos materiais e imateriais com vista à afirmação da identidade e da língua, numa perspetiva aberta e fecunda.
Um mundo global obriga à preservação das diferenças e ao suscitar das trocas e complementaridades. Daí a importância do Observatório da Língua Portuguesa – espaço de cooperação e de partilha, numa lógica em que a Língua seja um espaço de várias culturas e em que a cultura salvaguarde a vitalidade das línguas, como realidades vivas de inovação e criatividade.
* Presidente da Mesa da Assembleia Geral do OLP-Observatório da Língua Portuguesa