A Vida dos Livros

De 29 de dezembro de 2014 a 4 de janeiro de 2015

Publicou-se no ano que finda novo volume da Edição Crítica das Obras de Eça de Queirós – «A Correspondência de Fradique Mendes (Memórias e Notas)» (INCM, 2014), com edição de Carlos Reis (coordenador), Irene Fialho e Maria João Simões. É um dos documentos mais interessantes do naturalismo português…

DESCOBRIR A INTIMIDADE DE FRADIQUE
«A minha intimidade com Fradique Mendes começou em 1880, em Paris, pela Páscoa, – justamente na semana em que ele regressara da sua viagem à África Austral…». Todos conhecemos, quase de cor, este início da mais célebre correspondência literária da nossa cultura. Lembramo-nos ainda que «Carlos Fradique Mendes pertencia a uma velha e rica família dos Açores; e descendia por varonia do navegador D. Lopo Mendes, filho segundo da casa de Troba e donatário duma das primeiras capitanias criadas nas Ilhas por começos do século XVI. Seu pai, um homem magnificamente belo, mas de gostos rudes, morrera (quando Carlos gatinhava), dum desastre, na caça. Seis anos depois sua mãe, senhora tão airosa, pensativa e loura, que merecia dum poeta da Terceira o nome de Virgem de Ossian, morria também duma febre trazida dos campos, onde andara bucolicamente, num dia de sol forte, cantando e ceifando feno. Carlos ficou em companhia e sob tutela de sua avó materna, D. Angelina Fradique, velha estouvada, erudita e exótica, que colecionava aves empalhadas, traduzia Klopstock, e perpetuamente sofria dos “dardos de Amor”»… Eis as origens do homem de que falamos… Como sabemos, a Correspondência de Fradique Mendes não foi publicada em vida por Eça, tendo saído poucos meses depois da sua morte. Trata-se, porém, como «A Ilustre Casa de Ramires» e «A Cidade e as Serras», de uma obra semipóstuma, uma vez que a edição foi preparada e acompanhada substancialmente pelo seu autor. Como lembra a «nota prefacial», persiste uma sombra de dúvida sobre a eventual autoria plural da correspondência. Se é certo que a personagem de Carlos Fradique Mendes teve origem num pseudónimo geracional do grupo formado em torno de Antero, a verdade é que há as provas tipográficas emendadas por Eça de Queirós, no chamado «manuscrito Salema Garção», que liga, com grande verosimilhança as Cartas ao autor de «Os Maias». Fradique nasceu, de facto, por iniciativa coletiva no final de sessenta e ganhou amadurecimento graças a Eça. Foram, contudo, deixadas algumas epístolas inéditas por ocasião da publicação de 1900 – e (como diz Carlos Reis) «entre elas estão seguramente algumas das mais ilustrativas do pensamento de quem foi poeta e viajante, suposto autor de obra desconhecida e observador arguto dos homens e das coisas do seu tempo». Pode, aliás, dizer-se que, na linha de um notável trabalho nos outros volumes da edição crítica de Eça de Queirós, este é porventura dos mais interessantes, até porque obriga a uma criteriosa articulação com o contributo fundamental da geração de setenta na cultura portuguesa. Como se sabe, tudo começou com as publicações de 1888 em «O Repórter» e na «Gazeta de Notícias», do Rio de Janeiro, da apresentação e do epistolário em folhetins, continuando na «Revista de Portugal» (em 1889), com uma reapresentação da personagem e da obra que se destinaria ao grande público. Os autores da edição crítica enunciam os problemas que essas diversas versões suscitam – precedência de uns textos sobre outros, razão para a sua republicação na «Revista de Portugal» e verificação de que o romancista reescreveu a obra pelo menos quatro vezes… E concluímos encontrarmo-nos perante uma característica bem conhecida e admirada do autor de «Mandarim»: o extremo cuidado posto na escrita e a permanente tendência para o perfeccionismo… Tudo visto e ponderado, estamos perante uma das obras mais fascinantes da autoria de Eça de Queirós, até por conter uma complexa chave do pensamento maduro do autor, em especial na relação com a sua contemporaneidade, num momento extremamente complexo de dúvida e de desalento coletivos…
 
UMA MISTERIOSA HISTÓRIA
Carlos Fradique Mendes revela-se em primeiro lugar em 1869 como poeta satânico, num gesto de provocação, urdido por Eça, Antero e Batalha Reis. Joel Serrão escreveu sobre o tema o imprescindível «O Primeiro Fradique Mendes» (1985). Depois, Fradique assoma fugazmente em «O Mistério do Estado de Sintra», como bizarra figura («um excêntrico distinto»). No entanto, quem melhor conhecemos (e de quem se fala aqui) é a figura de meados dos anos oitenta, que nos aparece pela mão de Eça, que, no entanto, tem o cuidado de afastar qualquer pendor autobiográfico. O romancista já propusera a seu amigo Oliveira Martins, em 1885, publicar as cartas fradiquianas em «A Província», órgão da «Vida Nova», mas só três anos depois vai concretizar-se o projeto em «O Repórter», agora (1888) também dirigido pelo autor da «História da Civilização Ibérica». «Trata-se, como logo deduzes (E.Q. dirige-se a O.M.), de fazer para Fradique (não sei te lembras deste velho amigo) o que está na moda fazer para os grandes homens que morreram – publicar-lhe as cartas particulares» (23.5.1888). Fradique torna-se, assim, uma ambivalente personagem romanesca, de uma obra epistolar, antecedida de uma biografia explicativa e imaginosa. E Eça esclarece Oliveira Martins sobre essa construção: «A introdução a “Cartas” que “nunca foram escritas, por um homem que nunca existiu” não podia deixar de ser uma composição em que se tentasse dar a esse homem, primeiramente, realidade, corpo, movimento, vida. Não se pode decentemente publicar a Correspondência de uma abstração. De sorte que o tal estudo crítico é de facto uma novela – novela de feitio especial, didática, não dramática, mas enfim novela, com uma narração, episódios, uns curtos bocadinhos de diálogo, e até – paisagens!…» (Carta a Oliveira Martins, 12.6.1888). Mas quem é, afinal, Fradique? É um paradigma, entre o caricatural e o sério, das tendências cultas da época… Conheceu Baudelaire, foi companheiro de Garibaldi, amigo de Vítor Hugo, íntimo de Antero, Oliveira Martins, Junqueiro e de Ramalho… Em suma, Fradique não é um heterónimo, mas também vai além da pura personagem, como Carlos Eduardo, João da Ega ou Gonçalo Mendes Ramires. E é assim que o estudo crítico preliminar «é de facto uma novela – novela de feitio especial, didática, não dramática». Faz-se, no fundo, o retrato de um período de transição, que viria a revelar-se tenso e incerto. Se as cartas nunca foram escritas, por um homem que nunca existiu, o certo é que procuram olhar os sinais de um tempo que exigia o sentido crítico para superar a decadência. Carlos Mayer, lamentando como Oliveira Martins que a Fradique faltasse coordenação e convergência para um fim superior deu dele «um resumo sagaz e profundo»: «O cérebro de Fradique está admiravelmente construído e mobilado. Só lhe falta uma ideia que o alugue, para viver e governar lá dentro. Fradique é um génio com escritos»… Percebe-se que a figura, mesmo especial, seja um motivo crítico, um desafio, patente na carta sobre o Brasil a Eduardo Prado, publicada por Luís de Magalhães…

Guilherme d’Oliveira Martins

 
Subscreva a nossa newsletter