A Vida dos Livros

De 1 a 7 de dezembro de 2014.

Eugénio Lisboa prossegue galhardamente a publicação das suas memórias, que constituem documentos essenciais para a compreensão da vida e da cultura portuguesas do século XX. Falamos de «Acta est Fabula, Memórias IV, Peregrinação: Joanesburgo, Paris, Estocolmo, Londres (1976-1995)» (Opera Omnia, 2014).

PEREGRINO CURIOSO…
Nada melhor do que fazer um fim de semana em Londres, em visita à família, acompanhado de um livro desejado – de memórias e serena atitude crítica. Entre as deambulações citadinas, as obrigações, as livrarias e tudo o mais, foi muito bom contar com a companhia do último livro de Eugénio Lisboa – «Acta est Fabula, Memórias IV, Peregrinação: Joanesburgo, Paris, Estocolmo, Londres (1976-1995)». E a verdade é que ao regressar a Londres, sempre recordo os nossos primeiros encontros, há mais de vinte anos. Eugénio Lisboa, cuja amizade se foi reforçando com o tempo, é um peregrino curioso, uma personalidade especial, em quem o conhecimento literário e a vasta cultura são complementos naturais de uma simpatia inesquecível. Conheci-o primeiro, como é óbvio, através da sua obra e em especial da sua relação fundamental com José Régio. Não é, aliás, possível compreender o lugar da «Presença» na literatura e na cultura portuguesa sem conhecer a visão de conjunto, a leitura crítica e o acompanhamento pormenorizado por Eugénio do autor de «A Velha Casa» e da sua geração. E se houve quem o classificasse como presencista, foi certamente por desatenção ou desleitura, já que, admirando Lisboa a personalidade de Régio, possui luz própria, sendo um leitor crítico praticante.

CICERONE DA CULTURA

Eugénio é, nos seus ensaios, um extraordinário cicerone da cultura do século XX, sempre capaz de encontrar o singular e o melhor, mas também de descobrir os mais inusitados pecadilhos, às vezes onde menos se espera. Foi este crítico que cedo encontrei e que depois conheci pessoalmente em Londres (como Hélder Macedo). O contacto com a sua personalidade tornou a admiração antiga natural proximidade e especial afeição, extensiva a sua mulher Antonieta… A verdade é que a obra memorialística de Eugénio Lisboa vem trazer-nos a ligação da sabedoria, da cultura e do conhecimento ao humanismo e à independência de espírito (que nos levam a António Sérgio…). A cada passo, se nota, de facto, essa independência crítica que permite reconhecer a importância das suas apreciações e comentários, nunca tributários de qualquer favor, mútuo elogio ou cedência à moda. Estamos perante um crítico fiável, muitas vezes incómodo, mas sempre livre. O problema não está em concordar ou discordar, mas em sabermos que a sinceridade é a fidelidade suprema à busca da verdade e da justeza. Nesse sentido, Eugénio Lisboa cita, a propósito do que viu, com tristeza, em Moçambique, nas «nacionalizações selvagens e desordeiras, anunciadas e prontamente executadas, à ponta das kalashnikovs», a afirmação de Alfred North Whitehead, o matemático e lógico, amigo de Bertrand Russell: «a arte do progresso é preservar a ordem, no meio da mudança e preservar a mudança no meio da ordem». Assim, o autor de «Acta est Fabula», se conhece a história e o género humano como poucos, nunca desiste de fazer a democracia uma questão séria.

NOVA PARTIDA DE MOÇAMBIQUE

O volume agora dado à estampa inicia-se com uma nova partida de Moçambique, depois da independência, desta feita sob a invocação (dramática) de Tennessee Williams: «há um tempo para partir, mesmo quando não há um lugar certo para ir», com um aceno comovedor inspirado em Robert Graves: «Good-bye to all that». Estamos perante nostalgia, desprendimento, amargura, mas também a consciência plena de que o melhor seria mesmo partir. Ao longo de toda a obra, vê-se, contudo, que o autor nunca esquece essas raízes fortes e ternas da África Oriental… Se a peregrinação passa por Joanesburgo (onde a memória do Pai fica indelevelmente lembrada), por Paris (sem festa nem companhia…), por Estocolmo («um controlo suave, apoiado na abundância e na segurança») e sobretudo por Londres, por entre as estadas portuguesas, a verdade é que Eugénio liga sempre o seu ofício ao gosto da vida e das pessoas. O livro deve ser lido, pois, atentamente, contando com partes suculentas de um diário inédito e reflexões atualíssimas. Muitas vezes, deixa-nos mesmo ver o avesso das coisas para que entendamos melhor a superfície real. Há episódios tocantes, como o da terrível destruição da valiosa papelada que estava na garagem na avenida Massano de Amorim, ou o da chegada ao aeroporto de Mavalane, quando os zelosos funcionários moçambicanos se negaram a tratar Eugénio como estrangeiro, apesar do passaporte português. «Havia muita gente boa naquela boa terra moçambicana, mas, infelizmente, não era necessariamente essa que detinha nesse momento as rédeas do poder». E entre as referências sentidas ao longo do volume, temos a recordação de personalidades marcantes como Rui Knopfli, Fernando Namora (criador da insubstituível Biblioteca Breve do velho ICALP), David Mourão-Ferreira, Fernando de Mello Moser, Luís Amaro, Alberto Lacerda e Luís de Sousa Rebelo (que deveria ter merecido outras atenções, que não teve).

MEMORIALISTA DE ELEIÇÃO
Em Londres, o memorialista descreve-nos, com sentido prático, a situação um pouco peculiar do diplomata: «vive dentro da Embaixada, onde fala português com os colegas portugueses e lida com assuntos que dizem respeito a Portugal. E comunica todo o tempo com Lisboa. Mas, lá fora, é Londres com a sua vida própria, os seus valores, os seus sons, os seus ritmos, as suas atrações e repulsões. Há o teatro, os concertos, os pubs, os museus, o Tamisa, os parques, os scones, a língua… Estamos e não estamos instalados, somos e não somos londrinos, somos e não somos portugueses». Há quem pretenda dizer que estamos desenraizados, eu prefiro sustentar que fiquei pluralmente enraizado. Fui gostando e não gostando: nem tudo (…) é admirável». A cada passo sente-se o domínio do tempo, com uma fantástica capacidade de contar os pequenos nadas de que a vida é feita – em especial a paciência para lidar com a estupidez, com os empatas e com os burocratas, apesar das boas surpresas. E, com o humor, que nunca deixa, lembra G. B. Shaw a dizer que todos os prazeres do cidadão inglês podem ser partilhados com o seu cão e recorda H.G. Wells a invocar a lenta passagem da compreensão à ação na Albion quanto às mudanças necessárias… Ao meditar sobre a cultura, porém, arremete justamente contra os nossos que acham que é um «meio acessório chic, uma espécie de flor na lapela que dá jeito, mas não tem propósito de maior (…). A prova do bolo está em comê-lo, ou seja, no dinheiro que estão dispostos a investir nela (…) (que) foi sempre uma autêntica miséria». Longe do elogio, temos sempre a broca crítica, de quem se define assim: «Sou refilão (…) mas não sou ingrato e desprezo a ingratidão. Simplesmente o formato da minha gratidão não se compadece com curvar o espinhaço, para tomar do Eça, a contundente fórmula (…). As minhas admirações foram sempre críticas, que é para isso que serve a cultura…». 

Guilherme d’Oliveira Martins

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