AS ORIGENS DE UMA INICIATIVA
Há um ano, o Mário Quartin Graça, com o entusiasmo que lhe conhecemos, disse-me ser indispensável celebrar condignamente em Portugal os cento e cinquenta anos do nascimento de Miguel de Unamuno (1864-1936). Para tanto, preparou um cuidado programa, que envolveria um circuito pelos lugares portugueses que o Mestre de Salamanca tão bem conheceu e amou, além de uma peregrinação a Salamanca, com visita aos lugares emblemáticos da vida do admirado e multifacetado polígrafo. Quando compreendeu que doença não lhe permitiria concretizar esse seu projeto, enviou-me uma serena e incisiva missiva, dizendo-me que, com muita pena sua, não poderia levar a cabo a ideia que concebera e que se propusera concretizar. Respondi-lhe de imediato, que o Centro Nacional de Cultura continuaria a trabalhar no sentido do que nos propusera, com o sinal claro de que todos o queríamos recuperado. Entretanto, perdemos fisicamente o Mário, mas não as suas boas ideias e o seu sonho, e por isso avançámos, graças à generosidade de Pedro Roseta, para a celebração do aniversário do escritor inolvidável de «Por Terras de Portugal e de Espanha», seguindo o mais fielmente que foi possível o que o nosso querido amigo nos tinha proposto. É evidente, que, como todos sabemos, há realmente pessoas insubstituíveis, mas também conhecemos o que ele pensava sobre a importância da memória, e sobre a necessidade de não deixarmos quebrar o fio que nos une a quem nos antecedeu e para quem temos o dever de preservar o melhor do que nos foi legado.
INTÉRPRETE DA NOSSA CULTURA
Miguel de Unamuno foi um dos mais importantes intérpretes da cultura portuguesa, com a excecional qualidade de nos ver de fora, sem devaneios ou simplificações. Também sem paternalismos nem suspeitas, cedo percebeu as especificidades do ocidente peninsular, sem esquecer a força das nossas fortes complementaridades. Se Ortega amava Portugal, até pela proximidade da sua Espanha materna, o certo é que a distância relativamente ao «sentimento trágico da vida» e o seu pendor «vitalista» levaram-no a não se debruçar especialmente sobre o que distinguia os nossos povos, à parte a oposição entre a continentalidade hispânica, bem simbolizada em Quixote, e a presença heterogénea da grande frente marítima de Portugal. Unamuno foi mais adiante, mesmo que tenha sido imediatamente influenciado pela tragédia do seu amigo Manuel Laranjeira, que generalizou. De qualquer modo, a síntese entre a melancolia lírica e a história trágico-marítima foi para o pensador de Salamanca um terreno propício para o desenvolvimento do seu pensamento centrado na contradição entre os sentimentos de esperança e de desespero, bem patenteados na alegria e na tragédia dos poveiros, bem como na diferença entre as representações de Cristo de um lado e de outro das nossas fronteiras, como Guerra Junqueiro lhe assinalou um dia. Usando a expressão de Maria Zambrano, que procurou em Unamuno e Ortega, apesar das oposições, a força da sua inspiração, há, no fundo, que compreender a metáfora do coração: «que ao oferecer-se não é para sair de si mesmo, mas para fazer adentrar-se nele o que vagueia fora. Interioridade aberta; passividade ativa». Foi, afinal, essa «metáfora do coração», assim mesmo sintetizada, que Unamuno procurou entender em Portugal e nos portugueses…
A RELAÇÃO COM ANTERO
Antero de Quental foi o poeta português de quem, de facto, Unamuno mais esteve próximo, porque foram ambos das almas mais atormentadas pela sede de infinito e pela interrogação da eternidade. Sentimos nos dois o que encontramos na «agonia do cristianismo», que caracterizará a força e a perenidade do pensamento inovador do salmantino. E o poeta espanhol reconhece que há sonetos anterianos que viverão enquanto viver a memória das gentes, «porque serão traduzidos, mais tarde ou mais cedo, em todas as línguas dos homens atormentados pelo olhar da esfinge». Recordamos a fotografia de Miguel de Unamuno no seu gabinete de trabalho, com a inconfundível barba branca, rodeado de livros, publicações e apontamentos. Lá está a fileira de retratos dos seis portugueses que mais admirou, e que considera não só como símbolos da terra e das gentes de Portugal, mas também como referências do seu tempo – Herculano, Oliveira Martins, João de Deus, Antero, Camilo e Soares dos Reis. Herculano (que falou de um plácido sepulcro rodeado de esperança) partiu para Vale de Lobos. Oliveira Martins escreveu com nervo libertador o epitáfio nacional. João de Deus procurou na lírica o sentimento popular. Antero simbolizou a tragédia como emancipação. Camilo descreveu o país contraditório. Soares dos Reis ilustrou no desterrado a incompreensão do desejo. E interrogamo-nos sobre o mistério de Unamuno considerar Portugal como país de suicidas, talvez espelho do drama espanhol dos anos anteriores e seguintes. «Para Portugal, o sol não nasce nunca: morre sempre no mar, que foi teatro das suas façanhas e cunha e sepulcro das suas glórias». Portugal, se é poente, vive num condomínio, que Eduardo Lourenço considera como ponto de encontro entre as notas amorosa e elegíaca – pátria de amores tristes e de grandes naufrágios…
RELER OS NOSSOS MITOS
O ensaísta de «O Labirinto da Saudade», porque pertence à mesma linhagem de Antero e se aproxima da angústia de Unamuno, valoriza a ligação da melancolia e do sentimentalismo, mas não os considera constrangimentos. Antes interroga os mitos como sinais emancipadores, sob o aguilhão da crítica (como Vieira releu Bandarra). Antero, Unamuno e Lourenço interrogam a sede de infinito, e o peso trágico da sua limitação vital. E esse sentimento, que os dois ensaístas encontram na poesia de Antero, torna-se para o Professor de Salamanca sentimento trágico e para o ensaísta português crítica emancipadora. Por isso, Eduardo Lourenço recusa o apodo de suicida, para se dizer europeu desiludido, incapaz de se considerar vencido, porque antes crente na força plural da Europa e na compreensão da razão, como animadora de uma vontade crítica, capaz de compreender os limites nos diversos horizontes. Em razão desse ano trágico de 1908 (o do regicídio), em que escreve, Unamuno impressionou-se com o desalento português: «Este é um povo, não só sentimental, mas apaixonado, ou, melhor dito, mais apaixonado que sentimental. A paixão trá-lo à vida, e a mesma paixão, consumido o impulso, leva-o à morte»… Não podemos, porém, ficar, nesse momento estático. Como disse Vitorino Nemésio ao Mestre (em carta publicada por Ángel Marcos de Dios): «Dos grandes intelectuais espanhóis é Unamuno o único de quem nos podemos acercar sem receio de que nos olhe de lado e por favor. Consigo é possível, sem risco da nossa individualidade de povo, trocar ansiedades sobre o futuro e pactuar uma ação redentora» (14.5.29). E é à crença nessa ação redentora centrada no conhecimento e na confiança que Unamuno apela em nome do melhor da força crítica.
Guilherme d’Oliveira Martins