UM INCOMPREENSÍVEL SILÊNCIO
Por razões muitas vezes incompreensíveis, a sombra do silêncio esconde exemplos fundamentais da cultura e da arte. «S. Paulo» é um desses casos. O escritor de Gatão, ao ter-se exilado cedo para longe dos centros literários, contribuiu para um certo esquecimento, mas o tempo tem vindo a revelar que o autor é muito mais do que as simplificações criadas por antigos aduladores e críticos. Pascoaes continua a ser lido, com interesse renovado, descobrindo-se contributos premonitórios e duráveis, saudados por criteriosos leitores e críticos. Mais do que clássico é moderno, é alguém que compreende como poucos o tempo e a sua projeção na vida humana. Por vezes, quando se marca uma pessoa com determinada bandeira, as paixões digladiam-se pela repetição de argumentos a favor e contra, o que afasta quantos não se sentem atraídos pela contenda. Cesariny compreendeu muito bem a força intemporal do escritor. No caso de Pascoaes houve quem se fixasse no saudosismo, mas quem conheça a obra prolífera do autor facilmente pode perceber que essa questão é mínima para a apreciação serena da força do mestre. O próprio António Sérgio, crítico severo desse simbolismo, não negou o talento e as qualidades do singular homem de letras. Hoje, passado o calor distante dessa contenda e revelado o reconhecimento dos contemporâneos de insuspeitas tendências, podemos atribuir a Teixeira de Pascoaes o justo lugar, entre os mais relevantes no nosso panorama literário. E esta obra demonstra-o com clareza.
UM LIVRO GENIAL
António-Pedro Vasconcelos diz: «Estamos perante um livro genial». E põe-no como criador em paralelo com Pasolini. E acrescenta: «Desterrado no Gatão, como São Jerónimo na sua gruta, Pascoaes desgostoso do seu tempo cujas figuras e episódios por certo lhe não estimulam a lira nem suscitam o espanto, (à parte Brandão e Unamuno que venera) convive com outros personagens: Hamlet e D. Quixote, Napoleão e Jesus Cristo. Não distingue os Heróis consagrados pela História dos que foram inventados pela fantasia dos poetas. Trata de igual para igual Vénus e Santa Teresa, Camões e o Adamastor. Qual deles tem mais realidade? (…) “Nem a ilusão tem nada de ilusório, nem a realidade tem nada de real”, dirá Pascoaes. Não é uma blague. Ou por outra: é uma blague autêntica…». E assim, o poeta não precisa de ser atual. É ele mesmo. A sua singularidade levará a ser alvo de injustas e desenfreadas campanhas. Confessará a Unamuno: «Sim, os católicos estão furiosos contra mim». Hoje percebemos que se tratava de miopia e de incompreensão, de quem não lera ou de quem nada entendera… Lemos o «S. Paulo» e vemos que há uma compreensão serena e livre do cristianismo vivido nos ermos ibéricos, mesmo que Saulo aqui não tivesse chegado ou estado em pessoa. É uma literatura animada de espírito, em que nos é dado ver o que é descrito como se estivéssemos ante uma fidelíssima representação pictórica ou cinéfila: a delapidação de Santo Estevão, a conversão na Estrada de Damasco, a evangelização, as epístolas, o discurso aos Atenienses no Areópago, o regresso a Jerusalém, o naufrágio na ilha de Malta, a prisão, o julgamento, a entrada em Roma, a loucura de Nero, a morte de Agripina, o massacre dos cristãos no Coliseu, o incêndio de Roma… Oiçamos o analista lúcido: «Paulo, presidindo à lapidação de Estêvão, cometeu um crime, origem do seu remorso tão fecundo! Repetiu a tragédia divina em drama humano. Identificou-se ao Criador e Redentor. Quem lhe apareceu na Estrada de Damasco foi o seu remorso personificado em Jesus Cristo, o deus da sua vítima. A vítima empeceu ao carrasco, vinda do céu, envolta num relâmpago infinito. Empeceu-lhe, transfigurada no seu Deus, em Jesus Cristo. Empeceu ao carrasco e dominou-o completamente. O Deus de Estêvão ficou a ser Deus de Paulo». Pascoaes sente-se, assim, próximo de Paulo. Daí o seu encontro natural com Miguel de Unamuno, muito mais do que companheirismo. «O homem é religioso por lembrança da Origem, que é Deus, ainda em si, todo contido no primeiro ímpeto genésico». E o poeta, em ligação à mãe natureza de Marânus, lembra: «No Paganismo eram as criaturas sacrificadas à Divindade. Agora é Deus sacrificado às criaturas, na pessoa do Filho. O Cristianismo é a conclusão do Paganismo; ou este é a primeira fase daquele. O corpo antecede a alma; ou, como diz S. Paulo, a alma vivente antecede o espírito vivificante». Não admira que com toda esta liberdade de espírito tenha havido tantas incompreensões. Mas sentimos a força do homem religioso (como Herculano, Antero, Unamuno, ou Régio e Eduardo Lourenço), sem peias, procurando entender a alma contraditória e ansiosa de Paulo de Tarso. «A aurora é grega, o calor do meio-dia é judaico e é da Ibéria o sol poente, morto na cruz». E é essa morte que se torna vida… «Agora, o homem novo é S. Paulo, o cristão, o morto redivivo, o Deus que os desgraçados esperavam».
DIÁLOGO COM OS TESSALONICENSES
Lembremo-nos de Tessalónica. «Paulo, como Silas, vai a pé, curvado, com os olhos inflamados de luz, e o fantasma de Estêvão, ao seu lado leva um fruto na mão, para o comer. Oferece-o ao primeiro mendigo. Nada lhe pertence na terra, porque a terra não lhe interessa. E só o que nos interessa nos pertence. A Terra é dos bichos, como a Lua é dos lunáticos. Todos os tolos reinam naquelas planícies desertas, onde cai a sombra de altíssimas pirâmides, sem a mais leve mistura de claridade, dum negro absoluto e recortado. (…) Paulo é deste mundo interior que envolve o mundo e os outros mundos, e ninguém sabe onde ele acaba, vê para dentro, ouve para dentro, pois, dentro de si, é que ele descobre tudo, – o Infinito. A nossa memória é universal, e excede o próprio Universo, quando aliada à fantasia criadora (…). Paulo está com os escravos e os famintos, contra as classes dominantes. O seu fim é criar uma sociedade religiosa, em que todos sejam irmãos em Jesus Cristo, o único Senhor. Todos senhores no Senhor; e cada um no seu espírito liberto ou em Deus. Deus é liberdade». Miguel de Unamuno compreendeu bem o «S. Paulo» de Pascoaes, porque entendeu a poesia do mestre: «a filosofia poética de Teixeira de Pascoaes é uma filosofia assombrosa – não sombria. As realidades diluem-se e dissolvem-se nelas em sombra, e as sombras tornam-se e consolidam-se como realidades (…). Para Teixeira de Pascoaes, a obra do homem tem mais realidade que o homem mesmo». Há, no fundo, uma outra leitura de «Do Sentimento Trágico da Vida». Mas, mais do que uma leitura, é verdadeira ilustração.
Guilherme d’Oliveira Martins