A Vida dos Livros

De 6 a 13 de outubro de 2014

«O Museu da Inocência» de Ohran Pamuk é um romance (2008, trad. port, Presença, 2010) e um verdadeiro Museu, criado na cidade mágica de Istambul, espécie de imagem simétrica de Lisboa (as duas pontas da Europa – lugares de encontro e de diferença) e representam o melhor modo de enaltecer a importância do Património Cultural como realidade viva, material e imaterial, literatura e vida, memória e humanidade. Foi emocionante ter em Lisboa na entrega do Prémio Europeu Helena Vaz da Silva o testemunho sentido do escritor europeu. Invocamos hoje a obra.

UM MUSEU DIFERENTE
«Um dia os visitantes do meu museu conhecerão a nossa história e, de uma forma ou de outra, saberão no fundo do coração que tipo de pessoa era Füsun (…) Enquanto passearem de vitrina em vitrina e de caixa em caixa, observando todos estes objetos, os visitantes compreenderão como pude eu ficar a olhar para Füsun durante o jantar ao longo de oito anos, e quando virem de quão perto eu contemplava a sua mão, o braço, os caracóis do seu cabelo, a forma como ela apagava os cigarros, franzia o sobrolho ou sorria, os seus lenços, travessões para o cabelo, sapatos ou a colher na sua mão – (não lhe disse: “Mas, Kemal Bey, esqueceu-se de mencionar os brincos») -, saberão que o amor é uma atenção profunda, uma compaixão profunda…». Orhan Pamuk, romancista turco, cultor da confluência entre a arte e a memória, prémio Nobel da Literatura em 2006, cicerone privilegiado na sua cidade fantástica de Istambul, tomou uma decisão inédita. Na sequência da escrita de um dos seus romances, criou um museu de pequenos e diversos objetos que têm a ver com a projeção dos afetos e das lembranças na vida quotidiana. O romance donde a iniciativa resulta trata de um amor, total, persistente, sereno, possível em dado momento e depois tornado impossível, para voltar à possibilidade, antes se desvanecer na morte. Talvez haja uma paixão (no sentido de Rougemont), como matéria-prima da literatura, mas a verdade é que, mais que tudo, há um amor que chega à essência da relação humana. Orhan Pamuk, com este romance de 2008, não precisava de provar as suas extraordinárias qualidades. Os seus leitores há muito que o reconheciam como um escritor que o tempo fará ombrear com os melhores. Os laureados com os prémios Nobel dividem-se entre os que entram no umbral do esquecimento e os que, independentemente do reconhecimento, merecem estar no Olimpo das Letras. Há, de facto, os que nunca tiveram o Nobel, mas partilham o concílio dos deuses, mesmo sem essa glória talvez vã. Pamuk, mesmo que não tivesse sido premiado pela Academia de Estocolmo, mereceria estar entre os eleitos. Quem recorde a belíssima tradução de Miguel Serras Pereira de 2002 de «Os Jardins da Memória» («Kara Kitap», 1990) facilmente percebe que só um escritor muito dotado poderia dar-nos uma meditação tão sensível sobre a identidade e a memória: «Porque nada pode ser tão surpreendente como a vida. Exceto a escrita. Exceto a escrita, sim, evidentemente, exceto a escrita que é a única consolação»…
 
UM PRÉMIO ESPECIAL
Quando na segunda edição do prémio europeu Helena Vaz da Silva para a Divulgação do Património Cultural, promovido pelo Centro Nacional de Cultura pela Europa Nostra e pelo Clube Português de Imprensa e ganho em 2013 por Claudio Magris, a candidatura de Orhan Pamuk foi apresentada tornou-se evidente que, mais do que o grande romancista, era o cidadão apaixonado pela defesa do património cultural, encarado de um modo amplo e inovador, que estava em causa. Ao contrário de uma noção retrospetiva e meramente histórica da cultura, Pamuk, no seu paradigmático «O Museu da Inocência» trata da criação e da vida, dos símbolos e da memória como algo que dá sentido à dignidade humana. «É de cultura como instrumento para a felicidade, como arma para o civismo, como via de entendimento entre os povos que vos quero falar» – foi Helena Vaz da Silva quem o disse, partindo daí para um novo entendimento da cultura e do património, como o Conselho da Europa consagraria na Convenção de Faro. Tal como Magris em Trieste e na viagem pelo Danúbio, Pamuk faz não só a deambulação mágica por Istambul, mas a recolha dos pequenos objetos que nos ligam à vida de Füsun (como à de Rüya de «Os Jardins»), que são muito mais do que a invocação da literatura, como nos ensinou Marcel Proust, cujo espírito perpassa pelas suas reflexões e enredos. «A cada dia que passava, o elo que nos unia tornava-se mais forte, e com este nosso apego à vida, a Istambul, às suas ruas, à sua gente e a tudo o resto. Por vezes, enquanto estávamos de mãos dadas num cinema, eu sentia que ela era percorrida por um ligeiro estremecimento»… Mais do que uma abstração, cultura e vida ligam-se. Cada marco, cada pedra, cada brinco, cada perfume, tudo representa essa ligação à existência, razão de ser de estremecimento. Um gancho de cabelo, os bilhetes de cinema, porcelanas, o resto dos cigarros que Füsun fuma – fetiches e crónicas de um amor, os mapas de todos os sítios onde estiveram juntos. E qual o resultado? Um museu que permite entender o património imaterial na sua maior pujança e significado, reunindo coisas aparentemente inúteis, demonstrando que o valor maior não tem preço e que só se poderá entender Istambul nesses pormenores, sombras fugazes da presença do que permite às pessoas encontrar-se e desencontrar-se – desde a sombra no tapete ao brinco perdido, que se confunde com os arabescos no chão. E nisto entra Portugal. Os guardas dos museus sentem orgulho no que mostram, e transmitem a memória como realidade viva: «foi graças a um amável guarda do Museu Romântico da cidade do Porto (diz Pamuk invocando a Macierinha), o qual cheio de orgulho conversou demoradamente comigo, que vim a descobrir que o rei Carlos Alberto do Piemonte e da Sardenha, em 1849, no seu breve exílio em Portugal nos últimos três meses da sua vida, influenciou profundamente o romantismo português».
 
UM LUGAR DE VIDA E DE LITERATURA
O museu é um lugar de vida: «em museus poeticamente bem construídos, formados a partir dos impulsos do coração, sentimo-nos consolados não por encontrar ali objetos antigos que amamos, mas porque perdemos a noção do Tempo». Assim acontece em Çukurkuma, na Rua Dalgiç, número 24… O pretexto é um romance, um amor, uma obsessão, um sonho, mas o que o Museu da Inocência representa é uma lição sobre as coisas insignificantes que a memória engrandece. Num primeiro momento não lhes ligamos, mas depois recordam a própria vida. A inocência é essa aparente desatenção. E o protagonista do romance, em nome da memória, partiu em viagem para visitar todos os museus do mundo: «passava os dias a observar dezenas de milhares de estranhos objetos minúsculos em exposição em museus no Peru, na Índia, na Alemanha, no Egipto e em vários outros países (…) Espreitei por entre cortinas e janelas abertas em Lima, Calcutá e Hamburgo, no Cairo e em tantos outros lugares, e vi famílias a rir e a dizer piadas enquanto viam televisão e jantavam; inventava toda a espécie de desculpas para entrar na sua casa e até tirar uma fotografia com os ocupantes…». E assim descobre o «kitsch» dos cães com as cabeças que baloiçam. Ohran Pamuk simboliza em «O Museu da Inocência», como em toda a sua obra, uma procura melancólica do diálogo entre hábitos, afetos, tradições e culturas, e isso leva-nos a um universo incerto e à afirmação de Kemal Bey, que põe a memória no cerne e no epílogo do romance: «Para que todos saibam, vivi uma vida muito feliz».

Guilherme d’Oliveira Martins

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