LEITORA ATENTA DAS CONTRADIÇÕES
«É raro um pinhal ser apenas um aglomerado de árvores. Mesmo na Transilvânia, com a densa obscuridade que projetam os cedros no espaço vegetal, não se trata apenas de um aglomerado de árvores; há um acordo entre o sentimento humano e aquela formação botânica de raízes e de ramos». Agustina Bessa-Luís é na literatura portuguesa uma analista atenta das contradições e dos paradoxos que constituem a nossa identidade. Longe de se contentar com os brandos costumes (em que não crê), a romancista procura descobrir dentro das dissimulações e das aparências o que estas escondem e iludem. Essa a razão pela qual se preocupa permanentemente em interrogar o poder, a sua essência e as suas manifestações. Que é, no fundo, «A Sibila» senão essa interrogação sobre o português em carne viva? E há sempre relações de poder quando cuidamos das relações humanas, desde a família à vida política. É uma característica que Agustina nunca esquece. Em «Os Meninos de Ouro», o romance que diretamente trata do tema do poder político, afirma que «o caudilho não nasce exatamente dos conflitos, para progredir num ambiente de luta pelo poder político; nasce sobretudo do ato de esperar, que é um pensamento de um povo, e da forma vazia da esperança, consequência imediata da forma repleta da esperança. A natureza do caudilho não é de maneira nenhuma rara. Em muitos homens se encontram qualidades de liderança, de humanização, responsabilidade e acomodação e reforma prontas a desenvolverem-se e a tornarem-se um polo emocional; mas se não se der esse acontecimento cíclico na esperança, a sua forma vazia do ato de esperar que é um pensamento, ele não tem hipótese de ser reconhecido». Aqui está tudo dito, indo ao encontro da compreensão do género humano, em que o caudilho é mais do que a ave de rapina que espera pacientemente a sua presa. Para Agustina, o ato de esperar é um pensamento e é mais decisivo do que imperar ou do que dominar. É uma relação paradoxal que precisa de tornar a espera esperança. Contra a lógica burocrática e a rotina, trata-se de procurar como mandar sem o controlo de se sentir seguro e protegido.
O GOSTO DOS PARADOXOS
A regra é tantas vezes outra: o mando exerce-se normalmente sob a proteção de algo que reduz o risco e mascara a injustiça – isso marca a mediocridade e a irresponsabilidade. A dificuldade está em saber porque se pratica a injustiça sob honestos motivos. E o mundo está cheio de armadilhas e alçapões, mesmo e sobretudo onde menos se espera. «Apareciam as intrigas e as dissidências e, o que é pior, apareciam também as artes de enganar naqueles que eram os seus fiéis e que se consideravam nas condições de o suprimir e ultrapassar». Trata-se sempre de procurar na vida vivida a estranha contradição entre a fidelidade e a infidelidade – sendo que ambas se confundem como todas as atitudes estranhas de sobrevivência: a fidelidade protegida torna-se infidelidade e a infidelidade formal pode tornar-se autêntica fidelidade. Os honestos motivos podem motivar a injustiça… E Agustina escolhe em «Os Meninos de Ouro» um símbolo, como tanto gosta: uma flor que se chama «Iris Boissieri», de cor violeta, que cresce nas matas do Gerês e que se confunde com muitos outros lírios de curta floração. É um lírio azulado que aparece «onde o solo oferece melhor condição ao passo e brota da terra de uma maneira espontânea, como se acordasse ao grito de Pan». Para a autora nunca ninguém cantou esse sinal da «alma portuguesa» – nem Sá de Miranda, nem Bernardim, os dois que melhor o poderiam ter feito. As geresianas indicam a rota sólida que vai em direção ao caminho certo. Está em causa «o tempo original em que a alma convive com a eternidade». É a vontade que encontra o destino. «Deus dá o sinal de que passa pelas trevas distantes e tudo se imobiliza, cóleras, segredos, vento que desce da serra, ecos das torrentes, palavras que descem como torrentes, tudo – e um amor imenso paira e reconcilia todas as coisas».
PURO RELACIONAMENTO COM A MORTE
Se a política pode ser o culto da angústia e da renúncia, o certo é que esta se liberta pela busca do prazer e da recusa dessa mesma angústia. E José Matildes, a personagem de «Os Meninos de Ouro», «exigia o cumprimento da realidade como prazer sem quaisquer obstáculos, como puro relacionamento com a morte». Eis a chave do paradoxo vital. E, desarmante, a romancista diz: «Se uma lágrima descer sobre estas linhas como um fio de prata é porque existe consolação até ao último homem que por último desapareça; quando a terra rolar à volta do sol, com noites e manhãs, e só talvez o lírio geresiano olhe e pense no seu seio de cinzas». É a pura literatura que aqui se encontra, jogando, a cada passo, com a humanidade complexa e contraditória. As geresianas tornam-se a chave de tudo. É, de facto, insista-se, a vontade que encontra o destino. O sentimento, o prazer da vida, a recusa da angústia, mas também a melancolia, contra a brandura de entendimento ou a mediocridade do protecionismo. Essa planta fugaz representa a durabilidade e a capacidade de renascer sempre. José Matildes, como as geresianas, dispõe-se a ir à procura da rota sólida no máximo risco. É a vontade que se dispõe a construir (mais do que um encontro é um ato criador) o destino. Somos porque queremos e não porque outros nos julguem pelas nossas imperfeições. Eduardo Lourenço apela ao valor imperfeito do incerto e aventuroso. A lembrança e o desejo saudosos, cantados por Bernardim, e depois retomados por Francisco Manuel e Garrett aí estão. E Agustina encontra-se e desencontra-se com Camilo na busca audaciosa e propositadamente imprudente das raízes profundas do ser português, contraditório, teimoso, capaz de ceder, mas também ciente da força do antes quebrar que torcer… Estamos perante a busca prática de quem somos. Agustina é, por isso, tantas vezes contraditória, como, afinal, somos.
Guilherme d’Oliveira Martins