A Vida dos Livros

De 29 de setembro a 6 de outubro de 2014.

Agustina Bessa-Luís é a escritora portuguesa que no século XX mais exigente tem sido na procura do que somos, para além da superficialidade da nossa epiderme cultural. Em «Os Meninos de Ouro» (Guimarães, 1983) são as relações de poder em estado puro que encontramos, mas elas são visíveis em toda a sua obra fulgurante de um modo subreptício e permanente. Frederico Lourenço diz: «Todos os livros de Agustina distinguem-se, à boa maneira de Píndaro, por começos de imbatível pirotecnia: abrimos o livro na primeira página e somos colocados perante uma cintilação diamantina de inteligência, de finura irónica, de diabólica capacidade de expressão (“genial, o diabo da mulher”).

LEITORA ATENTA DAS CONTRADIÇÕES
«É raro um pinhal ser apenas um aglomerado de árvores. Mesmo na Transilvânia, com a densa obscuridade que projetam os cedros no espaço vegetal, não se trata apenas de um aglomerado de árvores; há um acordo entre o sentimento humano e aquela formação botânica de raízes e de ramos». Agustina Bessa-Luís é na literatura portuguesa uma analista atenta das contradições e dos paradoxos que constituem a nossa identidade. Longe de se contentar com os brandos costumes (em que não crê), a romancista procura descobrir dentro das dissimulações e das aparências o que estas escondem e iludem. Essa a razão pela qual se preocupa permanentemente em interrogar o poder, a sua essência e as suas manifestações. Que é, no fundo, «A Sibila» senão essa interrogação sobre o português em carne viva? E há sempre relações de poder quando cuidamos das relações humanas, desde a família à vida política. É uma característica que Agustina nunca esquece. Em «Os Meninos de Ouro», o romance que diretamente trata do tema do poder político, afirma que «o caudilho não nasce exatamente dos conflitos, para progredir num ambiente de luta pelo poder político; nasce sobretudo do ato de esperar, que é um pensamento de um povo, e da forma vazia da esperança, consequência imediata da forma repleta da esperança. A natureza do caudilho não é de maneira nenhuma rara. Em muitos homens se encontram qualidades de liderança, de humanização, responsabilidade e acomodação e reforma prontas a desenvolverem-se e a tornarem-se um polo emocional; mas se não se der esse acontecimento cíclico na esperança, a sua forma vazia do ato de esperar que é um pensamento, ele não tem hipótese de ser reconhecido». Aqui está tudo dito, indo ao encontro da compreensão do género humano, em que o caudilho é mais do que a ave de rapina que espera pacientemente a sua presa. Para Agustina, o ato de esperar é um pensamento e é mais decisivo do que imperar ou do que dominar. É uma relação paradoxal que precisa de tornar a espera esperança. Contra a lógica burocrática e a rotina, trata-se de procurar como mandar sem o controlo de se sentir seguro e protegido.

O GOSTO DOS PARADOXOS

A regra é tantas vezes outra: o mando exerce-se normalmente sob a proteção de algo que reduz o risco e mascara a injustiça – isso marca a mediocridade e a irresponsabilidade. A dificuldade está em saber porque se pratica a injustiça sob honestos motivos. E o mundo está cheio de armadilhas e alçapões, mesmo e sobretudo onde menos se espera. «Apareciam as intrigas e as dissidências e, o que é pior, apareciam também as artes de enganar naqueles que eram os seus fiéis e que se consideravam nas condições de o suprimir e ultrapassar». Trata-se sempre de procurar na vida vivida a estranha contradição entre a fidelidade e a infidelidade – sendo que ambas se confundem como todas as atitudes estranhas de sobrevivência: a fidelidade protegida torna-se infidelidade e a infidelidade formal pode tornar-se autêntica fidelidade. Os honestos motivos podem motivar a injustiça… E Agustina escolhe em «Os Meninos de Ouro» um símbolo, como tanto gosta: uma flor que se chama «Iris Boissieri», de cor violeta, que cresce nas matas do Gerês e que se confunde com muitos outros lírios de curta floração. É um lírio azulado que aparece «onde o solo oferece melhor condição ao passo e brota da terra de uma maneira espontânea, como se acordasse ao grito de Pan». Para a autora nunca ninguém cantou esse sinal da «alma portuguesa» – nem Sá de Miranda, nem Bernardim, os dois que melhor o poderiam ter feito. As geresianas indicam a rota sólida que vai em direção ao caminho certo. Está em causa «o tempo original em que a alma convive com a eternidade». É a vontade que encontra o destino. «Deus dá o sinal de que passa pelas trevas distantes e tudo se imobiliza, cóleras, segredos, vento que desce da serra, ecos das torrentes, palavras que descem como torrentes, tudo – e um amor imenso paira e reconcilia todas as coisas».

PURO RELACIONAMENTO COM A MORTE
Se a política pode ser o culto da angústia e da renúncia, o certo é que esta se liberta pela busca do prazer e da recusa dessa mesma angústia. E José Matildes, a personagem de «Os Meninos de Ouro», «exigia o cumprimento da realidade como prazer sem quaisquer obstáculos, como puro relacionamento com a morte». Eis a chave do paradoxo vital. E, desarmante, a romancista diz: «Se uma lágrima descer sobre estas linhas como um fio de prata é porque existe consolação até ao último homem que por último desapareça; quando a terra rolar à volta do sol, com noites e manhãs, e só talvez o lírio geresiano olhe e pense no seu seio de cinzas». É a pura literatura que aqui se encontra, jogando, a cada passo, com a humanidade complexa e contraditória. As geresianas tornam-se a chave de tudo. É, de facto, insista-se, a vontade que encontra o destino. O sentimento, o prazer da vida, a recusa da angústia, mas também a melancolia, contra a brandura de entendimento ou a mediocridade do protecionismo. Essa planta fugaz representa a durabilidade e a capacidade de renascer sempre. José Matildes, como as geresianas, dispõe-se a ir à procura da rota sólida no máximo risco. É a vontade que se dispõe a construir (mais do que um encontro é um ato criador) o destino. Somos porque queremos e não porque outros nos julguem pelas nossas imperfeições. Eduardo Lourenço apela ao valor imperfeito do incerto e aventuroso. A lembrança e o desejo saudosos, cantados por Bernardim, e depois retomados por Francisco Manuel e Garrett aí estão. E Agustina encontra-se e desencontra-se com Camilo na busca audaciosa e propositadamente imprudente das raízes profundas do ser português, contraditório, teimoso, capaz de ceder, mas também ciente da força do antes quebrar que torcer… Estamos perante a busca prática de quem somos. Agustina é, por isso, tantas vezes contraditória, como, afinal, somos.

Guilherme d’Oliveira Martins

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