CULTURA COMO MOMENTO DE CLARIDADE
«Cultura não é a vida toda, mas só o momento de segurança, de firmeza, de claridade». A afirmação é de Ortega e é recordada por Marías num dos textos em que invoca o seu mestre, acrescentando que «o homem tem uma missão de claridade sobre a terra, leva-a dentro de si, sendo a raiz mesma da sua constituição». A afirmação tem a ver com o método do mestre ligado à «razão vital»: «a razão sem a qual não é possível a vida, porque ela é a própria vida, a conexão vital das impressões em que as coisas da minha circunstância se me apresentam». De um modo persistente, claro e sistemático, Julián apresenta-nos a figura de alguém que o marcou decisivamente, porque lhe apresentou de outro modo o mundo da vida e o lugar decisivo das pessoas como seres de relação. Enquanto Unamuno apelava à imaginação, Ortega ia até à razão vital. Julián Marías procurou, deste modo, seguir essa continuidade e essa contradição, no sentido da compreensão filosófica. Nesse sentido, estes textos de memórias são um confronto e uma troca permanente entre o mestre e o discípulo. Sentimos a essência do processo de aprendizagem. «Dou para que me dês». Não posso aprender se não estiver disponível a dar-me para receber, a tornar-me recetor, capaz de conhecer e de compreender. «Ortega tinha de ganhar a minha estima e a minha adesão – a nossa, melhor dito -, cada dia, em cada lição, em cada tese enunciada. O entusiasmo da véspera não servia para o dia seguinte: tinha que fazer as suas provas, perante duras, juvenis mentes inexoráveis». A ideia de combate estava bem presente, por isso havia que recorrer à metáfora do naufrágio: «a consciência do naufrágio, ao ser a verdade da vida, é já a salvação. Por isso (dizia Ortega) apenas acredito nos pensamentos dos náufragos. É preciso convocar os clássicos perante um tribunal de náufragos, para que ali respondam a certas perguntas perentórias que se referem à vida autêntica».
UMA VIDA PARA PENSAR E AGIR
Nascido em 17 de junho de 1914, em Valladolid, Julián Marias formou-se na Universidade de Madrid (1931-1936), onde foi discípulo de Xavier Zubiri, de Garcia Morente e de Ortega y Gasset. Inclinado inicialmente para os estudos científicos, muito jovem optou pela literatura, história e filosofia, que prevaleceram sobre as investigações no domínio da Biologia. Ao ter começado a frequentar as aulas de Metafísica de Ortega, sentiu-se intensamente atraído pelo pensamento filosófico, seguindo os trilhos reflexivos do já celebrizado autor de «A Rebelião das Massas», que o jovem estudante considera como «um modelo de intensidade intelectual, de rigor de pensamento, de beleza de expressão, que nos parecia a forma mais perfeita que se podia alcançar». Em 1948, fundaria, aliás, com o seu Mestre, o Instituto de Humanidades de Madrid, não mais abandonando uma persistente ação pedagógica em prol do conhecimento da obra do grande filósofo espanhol. Logo em 1934, o jovem pensador colabora na revista dirigida por José Bergamín, «Cruz y Raya», sobre a ideia de autenticidade: «a palavra autenticidade, que tantas vezes é apenas uma palavra, ia sendo para nós o santo e a senha das nossas vidas. O intelectual não pode mentir, não tem o direito de mentir; não pode enganar-se a si mesmo, nem em amizade, nem em ciência, nem em política, nem em amor; não pode ser infiel à vocação, essa voz que nos chama sem nos forçar, que nos exige sermos livres». Finda a guerra civil, Ortega escreve ao seu discípulo: «Foi V. o único que acertou na tática para estes tempos: fazer, fazer, fazer». Em 1941, publica «Historia de la Filosofia», que se torna uma obra de referência. Vários são os seus livros relevantes que se seguem como: «Introducción a la Filosofía», «Filosofía española actual», «Ortega y la idea de la razón vital», «El método histórico de las generaciones», «La escolástica en su mundo y el nuestro», «Antropología Metafísica» y «Breve tratado de la ilusión». A militância republicana de Marías, a sua atitude de grande coerência cívica, afastá-lo-ão de uma carreira académica, como teria merecido, pela qualidade da sua obra e do seu magistério. No final da guerra civil foi preso durante três meses, em virtude de uma falsa denúncia, tendo sido libertado em agosto de 1939. A impossibilidade de ensinar em Espanha na Universidade levou-o a dar aulas como professor convidado em Universidades norte-americanas como Harvard e Yale, mas também em Porto Rico, mantendo uma colaboração regular na imprensa, com especial assiduidade no jornal «ABC». Em outubro de 1964 seria eleito sócio de número para a cadeira «S», antes ocupada por Wenceslao Fénandez-Florez, na Real Academia Espanhola, tendo feito o discurso de ingresso, a 20 de junho de 1965, sobre «A realidade histórica y social do uso linguístico». O seu grande amigo Pedro Laín Entralgo costumava referir-se a Julián Marías na sua tripla condição de mestre da liberdade, pensador da circunstância e escritor que ensinou os espanhóis a viver como homens livres.
UM CULTOR DA DIGNIDADE PESSOAL
Os testemunhos que nos chegam sobre a vida de J. Marías revelam-nos alguém que, com grande serenidade, nunca deixou de pensar e de fazer pensar. Por isso, acreditava na liberdade como algo de natural e necessário. Foi talvez por isso alvo de todas as incompreensões, à direita e à esquerda. De um e de outro lado, houve quem desconfiasse da sua independência de espírito, insuscetível de se tornar dóssil ou previsível. «O homem tem de fazer sempre e em cada instante alguma coisa (dizia ainda Ortega, recordado por Marías) justamente para continuar a ser o mesmo; e essa tarefa não lhe é imposta pelas circunstâncias, como o reportório dos seus discos é imposto ao gramofone ou a trajetória da sua órbita a um astro, mas tem de decidir por si mesmo em cada instante e em vista das circunstâncias o que vai fazer, ou seja, o que vai ser depois, no futuro». Javier Marías recorda que, nos diálogos intensos que havia em casa, o primeiro pensamento não lhe bastava, havia sempre que passar ao seguinte. Havia sempre que se obrigar a maior exigência. O filho de Julián diz que «para um jovem impaciente isso era um pouco exasperante. Mas, à distância, é uma coisa bastante inesquecível. Ensinava-nos a pensar. Tentava sempre que continuássemos a pensar». Apesar das desconfianças e perseguições ficou em Espanha, afirmando que todos saíssem o país ficaria abandonado. Deste modo, ficou e viveu um exílio interior, em nome de um país que precisaria de ser «inteligível». Diz a lenda, que, em pequeno, Julián sonharia ser pirata, de facto ficou longe desse desejo. Nunca se cansou de ensinar a pensar e de pensar, que é uma arte bem distinta, salvo na ideia de se aventurar na incerteza da vida, perguntando-se sempre como fazia Leibniz: porque somos em vez de não ser?
Guilherme d’Oliveira Martins