A Vida dos Livros

de 16 a 22 de Junho de 2014

A atribuição do Prémio Camões a Alberto da Costa e Silva é um acontecimento maior para o mundo lusófono, uma vez que o autor de «Espelho do Príncipe» (Nova Fronteira, 1994), um admirável livro de história e de memórias, é dos mais completos escritores da língua portuguesa contemporânea, sendo simultaneamente um dos intelectuais que melhor compreendeu o entrançado complexo da lembrança e de uma língua de várias culturas, cultura de várias línguas, na Europa, América e África…

SÍMBOLO DAS CULTURAS DA NOSSA LÍNGUA
Alberto da Costa e Silva é símbolo das culturas da língua portuguesa. E Mia Couto salientou muito bem a sua capacidade de compreensão da memória de África e o persistente trabalho de resgate dessa relação complexa, que assumiu «com arte e elegância». Quando lemos o ensaísta e o poeta, percebemos que estamos diante de alguém para quem a cultura é uma realidade viva, feita de inesperados encontros, de paisagens misteriosas e surpreendentes. O mundo que o escritor nos revela não é algo de separado da vida, e esse quotidiano leva-nos a entender mil pormenores, que nos permitem descobrir-nos e encontrar as realidades que nos influenciam. Dir-se-ia que acompanhamos o autor na invocação de sombras antigas e modernas, tornando-nos mais cientes da importância de um difícil diálogo de diferenças e complementaridades. «A imaginação foi alterando com o tempo o entrançado da lembrança». Ao lermos o «Espelho do Príncipe», onde o memorialista e o historiador se encontram, somos levados à recordação de um jovem de Sobral, no Ceará, até à ida para o Rio de Janeiro, que relembra episódios onde a natureza, as tradições e a sociedade que evolui se encontram, como no célebre episódio do ritual da morte de uma galinha, onde percebemos que o lado melancólico apela à magia da existência: «a visão da moça a matar a galinha frequentou a sua infância. Ele acordava cedinho e, encolhido na rede, assistia à cena a repetir-se, com o corredor escuro, o quadrado branco da porta e, no patamar de tijolos gastos da escada que descia para o quintal, a moça, a mudar de modinha, ou não mais cantando, porém sempre alegre, completa em seu riso, permanentemente ressonhada a degolar a galinha».

UM AMIGO DE PORTUGAL
Conhecemo-lo. Alberto é um amigo de Portugal. O Embaixador do Brasil foi com ele muito mais do que um representante diplomático. É como que um familiar próximo, despretensioso e aberto, cuja presença nos põe à-vontade, num fluir de aproximações, de temas e de naturais revelações. Sendo um profissional competente, nunca deixou de ser muito da nossa casa portuguesa, capaz de separar águas, sem nunca deixar de ser um afetuoso cultor da arte de pensar, de escrever, de lembrar, de ressonhar ou de celebrar. E como lembra a sua fulgurante escrita, é alguém de cativante presença. Voltando ao «Espelho do Príncipe», poderemos lembrar essa fantástica capacidade de imaginar: «Quando lhe pediam que falasse de um tema sobre o qual pouco sabia, o menino, sem falsidade, inventava». Qual a virtude fundamental do escritor ou do poeta? «Não seriam esses os seus melhores discursos, mas tampouco os piores. Nunca havia visto uma catedral de verdade, mas desatava a palavra das pedras e dos vitrais, das torres e da nave, e lá ia, a imaginá-las, em clarões como os que lhe magoavam os olhos, a pô-la no centro do jardim e da cidade, a dar-lhe velame e remos. Cada palavra era um início de assombros. O súbito puxar de uma noite estrelada». O criador confessa-se assim, dando campo ao desenvolvimento imaginoso.
DIPLOMACIA, UM JAMAIS CONCLUÍDO
Ao lembrar Manuel Bandeira, mestre inolvidável de «Vou-me embora pra Pasárgada», Alberto da Costa e Silva invocou um dia as qualidades excecionais que admirou no poeta pernambucano: «serenidade, coerência, ordem e limpeza», a que se juntavam «a bondade, a paciência e o enternecido bom humor». Essas as qualidades que o jovem estudante percebeu logo no artista consagrado. E, ao descobri-las, deu-nos a possibilidade de entender que a cultura também se faz nesse reconhecimento da humanidade e dos afetos. Quantas vezes, em encontros com o nosso querido António Alçada Baptista, fomos testemunhas dessa empatia, desse amorável entendimento, que o poeta cultivava com persistência e naturalidade. Como afirmou no seu discurso de investidura na Academia Brasileira de Letras: «a diplomacia foi um jamais concluído», porque jamais houve a aceitação do «aprendizado da ausência», já que ele foi sempre poeticamente uma «sombra emigrada». E, ao lembrar um querido amigo comum, Marcos Vinícios Vilaça, disse o essencial que o aproxima do modo humaníssimo de ver a vida. «Não pertence ele à raça dos que dividem e, ao dividir, muitas vezes dilaceram, mas como Carlos Chagas Filho» (o académico que o antecedeu na cadeira que hoje ocupa) «à linhagem rara dos que somam para multiplicar, atentos não só à riqueza da diversidade, mas sobretudo à força fundadora das lembranças».

UMA LUSOFONIA DIFERENTE E FUTURANTE
Pode dizer-se que com Alberto da Costa e Silva a lusofonia ganha um sentido e um significado que ultrapassam a lógica justificativa e retrospetiva. Daí a relevância da apreciação de Mia Couto. Temos de entender que um diálogo autêntico entre culturas diferentes e complementares, em virtude do contacto histórico, obriga à capacidade de ver os diversos lados e os diferentes aspetos das realidades. O Prémio Camões foi atribuído ao conjunto da obra, reconhecendo o modo de encarar o mundo de uma língua de várias culturas. Nesse ponto, se singulariza o agora galardoado. Afinal, o futuro da lusofonia e a sua originalidade basear-se-ão muito mais nos caminhos múltiplos, no sentido crítico, na capacidade inovadora, na dialética dos encontros, nas tensões e na força de compreender o inesperado e o incómodo, do que na tentativa de unificar ou simplificar. Fiz, pessoalmente, uma experiência inesquecível no Benim, tendo nas mãos o livro de Alberto, «Francisco Félix de Sousa – Mercador de Escravos». Fui testemunha presencial do impressionante quadro com que a obra se inicia: «Este é o quarto de Francisco Félix de Sousa. Não repare nos descascados e nas manchas das paredes. Cuide da cama portuguesa, de madeira sólida (não sei se pau-ferro, jacarandá ou mogno), ressequida e fosca por míngua de verniz, de cera ou de óleo. Há lascas neste torneado e falta um pedaço naquela pinha ou carrapeta, no alto do baldaquino que sustentava o mosquiteiro. O dono do leito jaz ao lado, sob uma campa em cuja cabeceira se ergue a imagem do santo de seu nome e devoção. Sepultaram-no como um príncipe da terra. E dentro de casa, à daomeana. No que dizem, teria sido o seu quarto…». Aí nos esperava, a mim e a Miguel Real, com grande simpatia, o neto de Félix de Sousa, que nos recebeu naquele lugar reservado e escondido dos olhares do mundo… Compreendemos nesse momento como a obra nos dá conta dos claros e escuros de «um medonho pesadelo» – e o autor fá-lo com um saber e uma consciência que nos permitem entender o essencial da ligação entre África e o Brasil. O historiador de «A manilha e o libambo: a África e a escravidão, de 1500 a 1700» e de «Um Rio chamado Atlântico», conhecendo bem essa relação complexa, abre-nos pistas para que o futuro se não construa de equívocos ou paternalismos, mas sim de uma consciência crítica e de uma fecunda abertura de novos horizontes. O entrançado da lembrança obriga-nos a olhar para diante sem receio de conhecer o passado.   


Guilherme d’Oliveira Martins 

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