O TEMPO COMO MATÉRIA-PRIMA DO ENSAIO
O tempo é um dos temas recorrentes na ensaística de Eduardo Lourenço (EL). É a sombra de Kierkegaard que impende sobre a sua reflexão, num combate sem tréguas em que Hegel é um permanente interlocutor invisível, sempre incapaz de satisfazer, numa lógica de sistema, a curiosidade do eternamente insatisfeito autor de «Heterodoxia». E o certo é que foi essa sempre inacabada curiosidade e essa insatisfação que permitiram ao ensaísta não se deixar arrastar pela voragem do imediato e das suas armadilhas. E qual o segredo, se é que há um segredo, para essa atenção clara e atenta ao incerto, mas tão inesperada? O segredo está em não se deixar aprisionar por qualquer determinismo, mesmo que encapotado. Como disse em «Sören Kierkegaard, Espião de Deus (1813-55)»: «contra a Filosofia na sua forma de sistema totalmente explicativo – o sistema de Hegel – Kierkegaard invocará a sua experiência pessoal de uma fé impossível de reduzir a um exercício intelectual ou mesmo à mais pura e legítima das contemplações». A chave de tantas perplexidades suscitadas pela obra de EL está aqui. É a experiência pessoal que interessa. Daí a especial ligação à poesia, não apenas como objeto de análise, mas como método de revelação. Quem o acusa de ter obra esparsa, não entende que o método que o pensador usa para melhor compreender a vida que o rodeia é exatamente o do interrogador, como Montaigne, ou o do vigilante, como Kierkegaard. A obra do pensador ganha, assim, densidade, partindo da compreensão de diferentes temas, pessoas e problemas, sendo chamado a refletir. E «durante a noite, guarda nas suas mãos precárias a lâmpada inextinguível da esperança». Daí a metáfora do «Espião de Deus, servo da inominada realidade anterior à separação da nossa treva e da nossa luz», porque se trata de cuidar da guarda do Homem… Como disse EL na revista «Colóquio», em 1959: «só a palavra poética é libertação do mundo. Em luta com a mastigação discursiva do mundo, ela descobre por rara e imerecida graça a passagem para esse Instante onde repousaríamos sempre, mesmo que a nossa marcha fosse mais vertiginosa que a luz. De repente estamos num continente novo e descobrimos que essa terra nos esperava há muito».
A SOMBRA NÍTIDA DE KIERKEGAARD
Em «Os Passos em Volta dos Tempos de Eduardo Lourenço» (Verbo, 2014), Carlos Câmara Leme fala-nos do enigma do tempo na obra do ensaísta, a propósito de Kierkegaard, centrando-se na fé, como luta contínua (como Unamuno dirá em «La Agonia del Cristianismo») e não como batalha ganha de uma vez por todas, assumindo o «diálogo real, de pessoa a pessoa, entre Deus e o homem e não do movimento universal do Espírito ou de uma impensável Matéria», ou seja, «o Homem e a Morte estão face a face, o homem está face a face com o homem». Não por acaso é a poesia de Antero de Quental que surge invocada – emergindo o paradoxo da situação humana traduzido num «encontro incrível entre a eternidade e o tempo». Afinal, o «tempo como tempo não se basta», daí a permanente relação Tempo /Eternidade / Instante, cabendo a este último fazer o tempo sair de si mesmo, dispondo os acontecimentos e as circunstâncias como se fossem «espetros unicamente visíveis pelo fogo súbito do Instante». E é esse instante que se torna, para EL, «eclosão incrível da eternidade do tempo», seguindo as pisadas do pensador dinamarquês: no «instante Cristo, só a repetição dele, a “imitatio Christi” é digna do nome verdadeiro de Instante». Em lugar do eterno retorno, o instante ou o acontecimento faz da história não uma abstração mas a expressão da existência pessoal, lançada e fascinada «pelo abismo aberto entre a Eternidade e o Tempo». Desse modo, o mito germânico de Migdar, a serpente que devora a cauda e que serve de símbolo à «Heterodoxia» e à obra de EL, não representa uma cabeça que morde, mas o próprio movimento ou a «paixão circular da vida por si mesma». Aqui reside a base de todos os paradoxos, entre razão e sem razão. Há sempre uma realidade dividida a considerar, um «estremecimento do Tempo escrito», que apenas os poetas podem revelar, e daí a importância fulcral de Camões, Antero e Pessoa – os três vigilantes da compreensão da humanidade e do tempo no nosso modo de ser. «Só uma flor humilde, misteriosa, / Como um vago protesto da existência, / Desabrocha no fundo da Consciência» – dirá, emblematicamente, Antero…
LEITURA E RELEITURA DOS TEMPOS. – Na conversa que a obra reproduz, havida entre Carlos Câmara Leme e EL, entende-se que a preocupação com o tempo não é de natureza especulativa. O tempo do ensaísta é o seu próprio tempo e o espaço que interroga é o da cultura portuguesa, de que é um dos melhores intérpretes. Aceitando a imperfeição, procura-se compreender o diálogo fundamental, que Mestre Gil nos relata no «Auto da Lusitânia» e que Almada Negreiros representou graficamente na Faculdade de Letras de Lisboa, Todo o Mundo e Ninguém. «Eu hei nome Todo o Mundo / e meu tempo todo inteiro / sempre é buscar dinheiro / e sempre nisto me fundo»; «E eu hei nome Ninguém / e busco a consciência»… Somos de facto a coexistência desses dois seres gémeos que nos definem, que nos iludem e que connosco sonham. Esse tempo que tanto intriga o mestre é o grande enigma, que Unamuno procurou descobrir «Por Terras de Portugal e Espanha» (e que o saudoso amigo, que há pouco nos deixou, Mário Quartin Graça, tão bem soube compreender). «Quanto à cultura portuguesa (diz EL) quis interrogar não de maneira especulativa, mas concreta, e numa pequena parte, a nossa memória. Sobretudo o que eu quis fazer, sem querer fazer de uma maneira determinada, mas que pouco a pouco se foi precisando, foi uma espécie de tentativa de compreender como é que funciona o imaginário português. O que é que nós somos. Nós somos aquilo que sonhamos, os mitos que construímos. Qual é a mitologia portuguesa?». Eis por que razão o tempo se torna fundamental. Exatamente como o foi para os poetas da trilogia sublime, ou para Fernão Mendes Pinto e Diogo do Couto, para o Padre António Vieira e Francisco Manuel – até Garrett, Herculano, Camilo, Eça… «Em função de que horizonte é que a cultura portuguesa tem funcionado? O que ela tem de particular? Isso só se compreende examinando os vestígios disso, que é a poesia, a ficção». Se há ensinamento que EL nos tem insistentemente inculcado é o da necessidade de compreender os mitos nacionais, não como ilusões, mas como matéria crítica. A identidade tem de ater-se à justa medida, afastando o excesso positivo e negativo. As bandeiras «heróis do mar» e «realidade irrelevante» tornam-se perigosas se apenas contribuírem para demonstrar uma existência póstuma… EL esclareceu-o em «Portugal como Destino»: «…Povo missionário de um planeta que se missiona sozinho, confinado num modesto canto de onde saímos para ver e saber que há um só mundo, Portugal está agora em situação de se aceitar tal como foi e é, apenas um povo entre os povos…».
Guilherme d’Oliveira Martins