Reflexão da Semana
de 27 de Setembro a 3 de Outubro de 2004
Continuo a falar-vos do périplo africano integrado no ciclo “Portugueses ao Encontro da Sua História”. Ao visitar a Ribeira Grande, a Cidade Velha, na ilha de Santiago, em Cabo Verde, tivemos a grata possibilidade de ligar várias peças do mesmo “puzzle”. Eis-nos num lugar de passagem obrigatória. Aqui foi, no dizer de Orlando Ribeiro, uma estação de experimentação de plantas, homens e animais, funcionando como uma espécie de placa giratória entre três continentes diferentes, caso único nos vastos territórios do mundo tropical. Por aqui passou o coqueiro, vindo da Índia, em direcção ao Brasil. Para aqui veio o milho grosso proveniente do Brasil, em direcção à Europa e ao continente africano… A importância das ilhas de Cabo Verde foi extraordinária no século XVI como entreposto, laboratório e lugar de miscigenação. Foi a guerra de corso utilizada pelas potências europeias (Holanda, França e Inglaterra) que ditou a decadência do arquipélago, na última metade de quinhentos. As explicações históricas não são compatíveis com a simplificação. A escravocracia foi largamente incentivada pelos europeus, mas encontrou a disponibilidade das autoridades tradicionais africanas. Assim se explicam, por exemplo, o prestígio e a influência de um Francisco Félix de Sousa no reino de Ouidah e no antigo Daomé. O certo é que hoje a memória e o conhecimento histórico desse tempo e dessas experiências constituem oportunidades concretas no sentido da compreensão e do intercâmbio de diferentes culturas. Vieira disse: “há aqui padres tão negros como azeviche. Mas só neste particular são diferentes dos de Portugal, porque são doutos, tão morigerados, tão bons músicos que fazem inveja aos melhores das melhores catedrais de Portugal”. É, pois, tempo de invocar a memória para que possamos reforçar os laços de solidariedade e de cooperação. O Dr. Daniel Pereira, diplomata e investigador caboverdiano, lembrou-nos que a Cidade Velha é um caso único, a merecer atenção especial e classificação na lista do património mundial da UNESCO: “infelizmente, o grosso dessa memória vivida desapareceu completamente. Mas tal não pode invalidar que o sítio possa vir a ser considerado como um património da memória, verdadeiramente enquistado na rota dos escravos, pelo seu papel e função no processo da universalização…” (“A Importância Histórica da Cidade Velha”, IBNL, Praia, 2004). Haverá ainda um caminho longo a percorrer até ao reconhecimento da UNESCO? Continue-se e complete-se o que está em curso. E façamos desse património da memória um ponto de encontro da “comunidade de afectos” que Vera Duarte invocou, citando António Alçada Baptista, num fantástico encontro entre amigos. Usando o mote do simpósio sobre Amílcar Cabral, que encontrámos a decorrer na Praia, pensar pelas nossas próprias cabeças, deve ser recusar a indiferença e o esquecimento…
Guilherme d’Oliveira Martins