A Vida dos Livros

A VIDA DOS LIVROS

A Biblioteca Nacional de Portugal organiza, por ocasião do segundo centenário do nascimento de Sören Kierkegaard (1813-1855) a mostra bibliográfica intitulada «Um Dinamarquês Universal», comissariada por Elisabete M. de Sousa e José Miranda Justo. A inauguração foi oportunidade para ouvirmos uma luminosa lição de Eduardo Lourenço, cuja obra está profundamente ligada ao pensador dinamarquês.

A VIDA DOS LIVROS
de 7 a 13 de Outubro de 2013



A Biblioteca Nacional de Portugal organiza, por ocasião do segundo centenário do nascimento de Sören Kierkegaard (1813-1855) a mostra bibliográfica intitulada «Um Dinamarquês Universal», comissariada por Elisabete M. de Sousa e José Miranda Justo. A inauguração foi oportunidade para ouvirmos uma luminosa lição de Eduardo Lourenço, cuja obra está profundamente ligada ao pensador dinamarquês.


 


O DESESPERO HUMANO
Quando Leonardo Coimbra morreu tragicamente no início de Janeiro de 1936 em resultado de um acidente de automóvel ao regressar de casa da família na Lixa, tinha em mãos a tarefa de escrever o prefácio a uma obra e sobre um autor que iriam, por certo, levar ao repensar da sua reflexão, se o escritor tivesse vivido mais tempo. Coube a Adolfo Casais Monteiro escrever esse texto sobre «O Desespero Humano (Da doença até à morte)», que continua a ser referencial na receção em Portugal da obra de Sören Kierkegaard. A obra foi publicada no próprio ano de 1936 na coleção «Filosofia e Religião» da Livraria Tavares Martins, fundada por Coimbra, e Casais Monteiro salienta que o livro do dinamarquês foi um dos que mais impressionou Leonardo nos últimos anos de vida. «O prefácio a esta tradução ia escrevê-lo quando a morte o levou, e é indubitável que era ele a única pessoa que em Portugal poderia realizar devidamente essa ousada empresa: apresentar a obra de Kierkegaard ao leitor português». E o certo é que o filósofo dinamarquês era «ignorado em Portugal». Com finura e inteligência, Casais dá-nos nesse prefácio, de modo clarividente, uma leitura esclarecedora que permite entender a importância de Kierkegaard na história do pensamento europeu. E salienta que «“os metafísicos por paixão” irão sem dúvida ao encontro do Kierkegaard inquietante, do adversário de Hegel, do precursor de Chestov na “luta contra as evidências”». A verdade é que só nos anos seguintes e sobretudo no pós-guerra é que esse autor, esquecido depois da morte, se tornou pensador fundamental pela valorização da singularidade existencial. E, como afirmou Jean Wahl, se tudo começa em Kierkegaard numa conceção religiosa determinada, centrada no luteranismo, o certo é que passa a constituir-se método de aplicação muito geral «para chegar a um pensamento apaixonado e dramático». Os existencialismos e a valorização da singularidade tornarão o dinamarquês referência essencial – e lembro-me bem do testemunho de João Bénard da Costa sobre o entusiasmo que sentiu pelo estudo de Kierkegaard, impulso apenas refreado pelo seu desconhecimento da língua dinamarquesa. Não fora isso, certamente que se teria abalançado para o estudo apaixonado da obra do extraordinário pensador. E ao ater-se a Emmanuel Mounier não deixou de dar especial relevo à «Introdução aos Existencialismos», onde o autor francês atribui papel crucial a Kierkegaard – «um desses homens que, em bom rigor, não podem ter discípulos, porque não deixaram sistema, mas que no entanto têm numerosa posteridade».


ONDE O NORTE E O SUL SE APROXIMAM
Na aparente distância entre o norte e o sul, Kierkegaard aparece na Península como um autor importante, capaz de fazer luz sobre muitas das interrogações e mistérios das nossas próprias culturas. E Miguel de Unamuno foi um dos autores que melhor soube ler o dinamarquês como precioso revelador do «sentimento trágico da vida». Oiçamo-lo: «A filosofia é um produto humano de cada filósofo, e cada filósofo é um homem de carne e osso como ele. E, faça o que fizer, filosofa não apenas com a razão, mas com a vontade, com o sentimento, com a carne e com os ossos, com a alma toda e com todo o corpo. Filosofa o homem». Esta é a singularidade que torna Kierkegaard incómodo, mas atraente, indo ao encontro da necessidade de superação dos excessos sistémicos e positivistas. Daí que, ao falar de Unamuno, tenhamos de falar do nosso Antero de Quental, do seu pensamento e da sua poesia, num drama pessoal que o aproxima das preocupações que o mestre de Salamanca encontrou na sua fulgurante aproximação a Kierkegaard. E nesse caminho cabe a célebre história que é digna das preocupações de Antero e Unamuno e que o dinamarquês conta no seu diário: um dia, o pai do filósofo, «rapazinho, guardador de carneiros nas charnecas da Jutlândia, sofrendo grandes males, cheio de fome e de frio, ergueu-se sobre umas colinas e amaldiçoou Deus» – e este homem não era capaz, aos oitenta e dois anos, de esquecer esse instante tremendo… Esse drama individual não poderia ser olvidado. E por muito que as dimensões estética, moral e religiosa se devessem relacionar, num caminho de maturação para chegar ao último estádio, tudo obrigaria a uma opção singular, imperfeita, estranha e inusitada. E Adolfo Casais Monteiro salienta: «O que Kierkegaard exige acima de tudo é que não se procure a fé e a verdade pelo abandono do humano; o que ele incansavelmente afirma é que a fé se conquista “quando o eu mergulha através da sua própria transparência até ao poder que o criou. (…) Por isso mesmo ele afirmou que o “cristianismo do Novo Testamento não existe», querendo dizer com isso que os homens não vivem o cristianismo, que lhe permanecem exteriores».


A HETERODOXIA MANIFESTADA
Eduardo Lourenço (E.L.) é, sem dúvida, quem, entre nós, melhor conseguiu chegar ao âmago do pensamento de Kierkegaard, sobretudo num texto publicado em «Heterodoxia – II» intitulado «S. K. Espião de Deus». Por isso ninguém melhor do que o ensaísta para intervir na Biblioteca Nacional, há dias, na inauguração da exposição em que se assinala os duzentos anos do nascimento do filósofo: «Um Dinamarquês Universal», excelentemente comissariada pelos Professores Elisabete M. de Sousa e José Miranda Justo. Foi uma luminosa charla, a que ouvimos a E.L. nesse fim de tarde ainda de verão. E não se esqueça «Kierkegaard e Pessoa ou as Máscaras do Absoluto», onde o ensaísta compara os processos criativos de fragmentação das personalidades literárias dos dois autores. Naquela tarde, reencontrámos a atualidade e a originalidade de alguém que esteve esquecido durante quase um século, mas que hoje é de referência essencial – autor genial de «O Conceito de Angústia», traduzido entre nós por João Lopes Alves, bom amigo que há pouco nos deixou (1). Foi-nos recordado por E.L. como o encontro com Regina Olsen foi o acontecimento central da vida de Kierkegaard. «Para não a ter perdido (…) ter-lhe-ia sido necessária uma fé semelhante à de Abraão, uma fé absoluta. Mas a sua não era dessa qualidade. Para o ser, seria necessário que Deus lhe retirasse da alma a sua melancolia e esse espinho que não lhe podia consentir uma verdadeira relação humana com ninguém. O seu interlocutor era essa mesma melancolia como sinal de Deus, pois Deus mesmo guardava e guardaria sempre o incógnito». No entanto, o «homem não precisa de ir mais além de coisa alguma mas de estar exatamente em si mesmo. A essência da vida humana é repetição. A Lei Nova é sempre a Lei Antiga não cumprida. (…) É para uma morada antiquíssima que marchamos». E a solidão torna-se um modo de conforto e o assumir da angústia uma maneira de a esquecer. E, assim, ao «espião de Deus» caberia descobrir «o remédio contra o aguilhão que o hábito converteu em nova e mais radical morfina da alma humana»…

Manifestamos uma sentida homenagem a um dos mais denodados sócios do CNC, filósofo com provas dadas, jurista respeitadíssimo, um dos nossos melhores fiscalistas e cidadão sempre empenhado e ativo.

Guilherme d’Oliveira Martins

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