A VIDA DOS LIVROS
de 19 a 25 de agosto 2013
A leitura da “Peregrinação Interior” de António Alçada Baptista (Moraes, 1971 e Uranus, 1982) permite compreendermos como aconteceu, sobretudo a partir dos anos cinquenta em Portugal, a abertura para a democracia de um campo no qual o Estado Novo tinha procurado e tinha conseguido um apoio estável, o dos meios eclesiais católicos. Desvanecida a sombra negra do anticlericalismo, que marcara a transição do século XIX para o século XX, emergiu o tema da liberdade, do desenvolvimento do pós-guerra e do combate do atraso. A obra é uma ilustração viva desse choque.
UM CASO MUITO ESPECIAL
António Alçada Baptista representa na história cultural portuguesa um singular exemplo que ora tem sido reduzido injustamente a uma suposta ambição política, ora tem sido alvo de manifesta desatenção relativamente a um real papel de intérprete heterodoxo de uma cultura condicionada pela oscilação entre os mitos de todo o mundo e ninguém. Nada mais enganador do que desvalorizar o seu lugar crucial na preparação da democracia. Vindo de um meio conservador, com fortes raízes na sociedade beirã, sendo destinado a um percurso tradicional de uma advocacia de negócios e influência, depois de uma formação nos jesuítas, António Alçada recusou esse destino, apesar de ter começado por sentir um sucesso possível nos primeiros passos que começou a trilhar. O fim da guerra e a necessidade de abertura cultural e política somou-se às profundas mudanças ditadas pela reconstrução europeia e pelo plano Marshall. Apesar de todas as resistências do Estado Novo, o certo é que os ventos da modernização fizeram-se sentir. As mentalidades, as influências, os debates, os autores, as tendências artísticas, tudo vai mudar no final dos anos quarenta e cinquenta. Há tensões contraditórias que a geração de Alçada Baptista vai interpretar. O reviralho, a partir de 1945, sente uma evidente atração por quem tinha sido a grande aliada dos Estados Unidos para pôr fim ao domínio do «eixo», a União Soviética. Os temas sociais e o chamado neorrealismo vão ocupar um lugar proeminente. Nos Estados Unidos, o «macartismo» e a caça às bruxas criarão um clima intolerável, o que servirá para fortalecer, num primeiro momento, as simpatias intelectuais relativamente às suas vítimas.
UM CATÓLICO CRÍTICO
Para um católico com preocupações críticas, os motivos da separação prendiam-se com a confusão de uma cruzada política que acenava com os fantasmas do anticlericalismo que tinham levado, em parte, ao fim da Primeira República. Salazar sobrevivera em 1945 contra as expectativas de alguns, uma vez que a «guerra-fria» evitara a liberalização a sério na Península Ibérica. Mas havia mudanças, e António Alçada cedo começou a compreendê-las – até porque os motivos de desconfiança iam-se acumulando mesmo nos meios conservadores. Os monárquicos perceberam que a hipótese de uma restauração, acenada antes numa base equívoca, tornara-se uma ilusão irrealizável no âmbito da «situação», até por falta de vontade do Presidente do Conselho e dos seus putativos delfins. O caso do Centro Nacional de Cultura, fundado por jovens monárquicos em 1945, é ilustrativo. A evolução no sentido da oposição ao regime correspondeu à soma de fatores complexos e contraditórios – que levaram muitos monárquicos e católicos a aproximar-se dos meios oposicionistas, numa perspetiva moderada ou até radical, o que levaria ao alargamento do campo de ação cultural dos críticos do regime. Há, assim, um forte contraste com o ambiente cultivado por António Ferro nos alvores do regime. Depois de 1945, deixa de haver uma relativa cumplicidade com meios culturais e artísticos… Entretanto, o que Mounier designa como «l’eveil de l’Áfrique noire» começa a fazer-se sentir (a Igreja Católica não podia deixar de estar atenta ao Terceiro Mundo e à autodeterminação dos povos), ao lado da crescente consciência dos problemas sociais e das desigualdades com repercussões pastorais e teológicas. Haveria que denunciar a «desordem estabelecida». Em Portugal, logo em 1945, houve esperança numa abertura. Alguns católicos apostam na democratização através do MUD. Aí encontramos Francisco Veloso, antigo dirigente do Centro Académico da Democracia Cristã, de Coimbra, onde militara Oliveira Salazar, além do Padre Joaquim Alves Correia, missionário espiritano, de Sebastião José de Carvalho, monárquico liberal, e de José Vieira da Luz. O Padre Abel Varzim fora afastado do lugar de deputado à Assembleia Nacional no final da legislatura de 1938 a 1942, por impossibilidade de ter eficácia nos seus alertas sociais, tendo depois os membros da Liga Operária Católica (LOC) abandonado os postos diretivos dos sindicatos nacionais. Há ecos de que o Padre A. Varzim teria sondado algumas personalidades católicas para a eventual criação de um Partido Democrata-Cristão. Em 1946, o Padre Joaquim Alves Correia é exilado nos Estados Unidos depois de ter publicado no jornal «República» um artigo sobre a «noite sangrenta» de 1921. Entretanto, a publicação do jornal «O Trabalhador», da Ação Católica Operária, é suspensa no mesmo ano. Na campanha eleitoral de 1949, em que concorre o General Norton de Matos contra o Presidente Carmona, um jovem católico, assistente da Faculdade de Direito de Coimbra, Orlando de Carvalho, afirma: «A Ditadura porque não é um sistema de governo, mas um interregno na vida política normal (…) não tem de pensar em como renovar-se, em como subsistir, mas apenas em como findar e o mais depressa que puder (…). O único critério que até hoje me pareceu suficiente de renovação é o critério do povo, da consulta popular sincera» («Diário Popular», 24.1.49). Em resultado destas declarações, o jovem vê suspenso o seu contrato de segundo assistente na Faculdade. Os sinais são vários. Em 1950, o Padre Abel Varzim organiza em Lisboa o I Congresso dos Homens Católicos, a que assiste o Ministro da Justiça, Manuel Cavaleiro de Ferreira; no entanto, este abandonará os trabalhos em virtude das intervenções críticas, tendo havido pressões, por exemplo, relativamente a José Sebastião Silva Dias, para aligeirar os reparos. Em 1951, Manuel Bidarra de Almeida será afastado da direção da Ação Católica, em virtude de uma intervenção contra a «situação» no Congresso Internacional Católico de Lisboa. Em 1955, o I Congresso da JOC suscita suspeitas e desconfianças, uma vez que o regime teme que Abel Varzim se prepare para fundar o Partido Democrata-Cristão – por isso, a censura recebe orientações para fazer passar despercebida a iniciativa na imprensa. Em 1956, diversos membros da Juventude Universitária Católica (JUC) contestam, em Coimbra e Lisboa, o Decreto-Lei 40.900, de 12 de dezembro, por restringir os direitos das Associações de Estudantes. A denúncia prolongar-se-á, envolvendo o futuro Presidente Geral da JUC, João Bénard da Costa (1957-58) e Carlos Portas, Presidente da Associação de Estudantes de Agronomia e Presidente diocesano da JUC. É o tempo em que o jornal «Encontro» ganha protagonismo crítico – sendo Pedro Tamen chefe de redação e envolvendo Nuno Cardoso Peres (que viria a professar como dominicano, Frei Mateus Peres, O. P.), Cristovam Pavia, Nuno Bragança, Nuno Portas, José Domingos Morais, José Escada e M. S. Lourenço. Este será o grupo que acompanhará Alçada na sua editora.
O ABRIR DAS JANELAS CULTURAIS
Pode dizer-se que, a partir do ano emblemático de 1958, António Alçada Baptista deu nos meios culturais (demarcando-se do jacobinismo e do coletivismo), com a Livraria Morais e depois com a revista «O Tempo e o Modo», contributo decisivo para o termo da chamada «frente nacional» de Salazar, do mesmo modo que, nos meios militares, a candidatura presidencial do General Humberto Delgado, antigo símbolo das Forças Armadas fiéis ao regime, e, na Igreja Católica, o memorando do Bispo do Porto dirigido ao Presidente do Conselho. Estava, no fundo, em causa o que afirmaria na «Peregrinação Interior»: «Peço e insisto com os senhores especialistas de povos e planificadores de impérios que não se deem por contentinhos com o trabalho que estão a fazer e peço a todos os incomodados do mundo que não desistam de pensar como é que isto se pode consertar».
Guilherme d’Oliveira Martins