A VIDA DOS LIVROS
de 1 a 7 de Julho de 2013
Um livro? Sim, claro: «A Influência Portuguesa na Indonésia», de António d’Oliveira Pinto da França (Prefácio, 2003). É uma obra-prima, que não pode ser dispensável. Fizemos a Indonésia de lés-a-lés com essa obra nas mãos, e para todos era uma referência. Mas hoje recordamos o grande amigo, o diplomata exemplar, o cidadão, o homem de cultura. Por isso fomos buscar uma fotografia antiga de Sofia e António, para recordar tantas conversas, tantos ensinamentos… Obrigado por tudo, António! Tudo foi tão inesperadamente rápido…
CULTOR DA MEMÓRIA PORTUGUESA
Posso dizer sem receio de exagero que António Pinto da França foi um dos melhores cultores da memória portuguesa no mundo. Francisco Seixas da Costa também não teve dúvidas. É uma perda irreparável. Inesperadamente deixou-nos, num desses acidentes domésticos que tornam perigosas as nossas casas, por mais acolhedoras que sejam. E a verdade é que as casas deste embaixador de exceção sempre foram muito acolhedoras, graças às qualidades hospitaleiras de Sofia e António. Quem tenha estado na Quinta da Anunciada Velha em Tomar, a usufruir da principesca forma de receber dos Pinto da França, jamais esquecerá. Naquele local de muita História, a casa da quinta tornou-se um fantástico repositório das andanças pelo mundo dos proprietários. E recordo um dia em que pudemos celebrar lá a relação luso-indonésia, com vários protagonistas de um percurso muito complicado, em que foi possível superar dificuldades e vicissitudes e regressar a uma amizade genuína de dois povos tão distantes e próximos.
UM ARTÍFICE DO REQUINTE
Há um ano estávamos a preparar a viagem do CNC a Minas Gerais e a sua ajuda foi preciosa. Com ele pudemos afinar os pormenores de maior requinte, porque ele conhecia o que de melhor havia na especificidade de cada identidade, de cada singularidade. Havia nele uma espécie de íman que o fazia aproximar-se naturalmente das referências antigas e da gente interessante. E se falo do Brasil, é porque foi a última ocasião em que pudemos trabalhar juntos. Mas antes houve os anos em que fomos pondo de pé, contra ventos e marés, e sempre graças à sua persistência, sensibilidade e conhecimento, a amizade entre Portugal e a Indonésia, numa relação apaixonada que António Pinto da França trazia consigo desde o tempo em que, de 1965 a 1970, foi encarregado de negócios em Jacarta. Desse período, veio não apenas o enamoramento pela Indonésia, mas também um conhecimento profundo sobre a história, a antropologia, a geografia da terra e dos afetos. Quando se falava dessa amizade, os olhos iluminavam-se-lhe. E depressa nos sentíamos envolvidos pelas referências, pelos objetos, pela descrição das personagens e das suas pequenas histórias. Leia-se «A influência portuguesa na Indonésia». Está lá tudo o que deve estar. Há uma história comum a contar, de um encontro e de um diálogo. E quando fomos de ilha em ilha, de comunidade em comunidade, percebemos o porquê do enamoramento do diplomata que depressa se tornou embaixador dessas longínquas paragens onde quer que estivesse. Quando um povo chega tão longe, em condições tão precárias, ditadas pela distância e pelo esgotamento, só pode singrar, se ganhar o respeito dos novos interlocutores. E um dia o Sultão de Ternate dizia-nos que tinha boas memórias dos portugueses, enquanto missionários e mercadores, muito mais do que se fossem apenas guerreiros ou administradores. Afinal, as primeiras tarefas, mais do que as segundas, obrigam à proximidade e à confiança, sem o que não pode haver sucesso na palavra e na troca.
DESCOBRIR LIGAÇÕES E PONTES
António Pinto da França dedicou-se a tentar descobrir esses fatores de ligação, essas pedras de toque, desde as imagens e monumentos até aos usos e costumes e à língua. Que é o património etimologicamente senão esse múnus que se transmite através da memória por diversas gerações? A referência patriarcal é um elo e uma metáfora. E num momento em que tanto se fala de memória histórica e de mundo que o português criou, devemos lembrar a lição extraordinária de António Pinto da França, segundo a qual não há transmissão sem troca. O mundo que o português criou é, por isso, o mundo que outros criaram connosco. Daí esse sortilégio de partir e de ser capaz de ver de fora. E o embaixador ensinou-nos, por isso, que a noção de «influência» nunca pode resumir-se a uma dominância ou a uma aceitação passiva. Quando duas culturas entram em contacto uma com a outra, o resultado é o nascimento de uma terceira realidade. E se Portugal é denominador comum, o certo é que as novas realidades escapam-nos necessariamente, e aí está a sua riqueza. Só é possível sermos autênticos no tocante ao diálogo cultural, tornando-o verdadeiro intercâmbio e criação. Só assim poderemos superar desconfianças e suspeitas, através de um conceito novo e universalista de património cultural criador. Que é o barroco brasileiro senão algo de totalmente novo que resulta de um encontro com realidades inéditas e com uma natureza diferente e inesperada? Que é o homem cordial de Sérgio Buarque de Holanda senão quem reúne idiossincrasias contraditórias – de carga positiva e negativa? Hospitalidade e hostilidade. Agostinho da Silva falava de cultura de paradoxos. Eis por que razão falamos de várias culturas da língua portuguesa e de encontro da língua numa cultura de várias línguas. Poderá parecer estranho tudo isto, para quem não tenha conhecido António Pinto da França. Mas, quem tenha beneficiado da sua experiência e ensinamentos, depressa percebe que a história era o pano de fundo, mas o que lhe interessava era o contacto humano e a sua projeção no futuro. E o certo é que António era capaz de entender os dois lados da relação cultural, o dentro e o fora, o nós e os outros. O percurso do diplomata facilitou a compreensão do que é diverso e contraditório. Depois de estar no Conselho do Atlântico Norte (1970-74), foi cônsul-geral no Rio da janeiro (1974-77), tendo ainda sido enviado para negociar a libertação dos militares portugueses ainda detidos em Timor-Leste. O Brasil foi outra das suas paixões – sendo de indispensável a leitura os dois volumes que publicou de cartas familiares que revelam os debates sobre a evolução das relações entre Portugal e o Brasil, na encruzilhada das mudanças políticas: «Correspondência Luso-Brasileira» – I volume, «Das Invasões Francesas à Corte no Rio de Janeiro (1807-1821)» e II volume, «Cartas Baianas – o Liberalismo e a Independência do Brasil (1821-23)» (INCM). De 1977 a 1979, foi embaixador em Bissau, do que resultou «Em tempos de inocência – um diário da Guiné-Bissau», reflexões premonitórias, perante uma realidade que evoluiria de modo perturbador. Em 1983, depois do exercício de altos cargos no Ministério, é colocado em Luanda, onde fica até 1988. São significativas as suas reflexões e testemunhos num momento de muitas incertezas. Leia-se «Angola – dia a dia de um Embaixador» e usufrua-se «Aguarelas de Luanda e d’outros lugares de Angola – estudo sobre as aguarelas de Sofia Pinto da França». O percurso impressionante continua na Conferência dos Direitos Humanos da CSCE (no ano emblemático de 1989), na Embaixada em Bona, aquando da reunificação alemã (1990-1995) e junto na Santa Sé (1996-2000) e, por fim, na presidência da ALIAC, Associação Luso Indonésia de Amizade e Cooperação. A vida e a obra de António Pinto da França levam-nos ao contacto com a cultura e o gosto da vida. Por isso, esperávamos ainda tanto dele. Mas o seu entusiasmo fica.
Guilherme d’Oliveira Martins