A VIDA DOS LIVROS
de 24 a 30 de Junho 2013
Regressado de Atenas, com a enorme satisfação de participar no jubileu da Europa Nostra e no congresso europeu do Património Cultural, depois de há um ano, termos tido esta mesma iniciativa em Lisboa, faço-o com os olhos cheios de muitas memórias numa peregrinação às raízes da civilização.
RAÍZES ANTIGAS
Muito mais do que as circunstâncias imediatas, o importante é percebermos que as antigas raízes não podem ser esquecidas, e que o diálogo entre as civilizações se faz sempre dentro de cada geração e entre gerações. A hospitalidade foi magnífica, Costa Carras, presidente da Elliniki Etairia, multiplicou-se em simpatia, para que os cinquenta anos da Europa Nostra fossem devidamente assinalados da melhor maneira. E foram na dignidade que se esperaria. Apesar de alguns pequenos contratempos iniciais que nos atrasaram a chegada, desde a greve dos controladores aéreos franceses à greve geral grega, que se seguiu à decisão do fecho da televisão pública, depressa nos pudemos integrar no Congresso, graças à amabilíssima e aristocrática receção de Edmée Leventis, com a melhor mesa grega e um panorama esplendoroso da Acrópole, iluminada naquele cair de tarde, nas vésperas do início de um tímido verão, que não quis deixar de se manifestar, por contradição, com uns breves e inofensivos pingos de chuva, que praticamente se desvaneceriam nos dias seguintes. Entretanto, havia notícias do grupo que deambulava poeticamente no mar Egeu, a recordar a poesia de Sophia de Mello Breyner. Tudo se associava. E ouvíamos alguns remoques sobre o pouco cuidado com a preservação do património cultural e sobre o excesso de grafitis a desfearem monumentos e lugares magníficos. O incansável Embaixador Ferreira Marques dá-nos informação de que, no âmbito das comemorações do dia de Portugal, houve ocasião para recordar o filme «A Noite em que Fernando Pessoa se encontrou com Konstantinos Kavafis», realizado em registo onírico e extremamente belo por Stelios Charalambopoulos. A obra foi muito premiada, e o mais espantoso é a ligação imaginária, entre os dois grandes poetas do século XX, de Portugal e da Grécia: Kavafis (1863-1833) e Pessoa (1888-1935) foram contemporâneos e hoje são venerados como referências maiores das poesias grega e portuguesa. Kavafis praticamente nunca viveu na Grécia, mas nunca deixou a língua grega como ofício seu, apesar de viver em Alexandria e de aí exercer uma função na bolsa de valores egípcia. Esse diálogo poético imaginário ganhou atualidade. Há um ano, os europeus, mais ativos e cientes dos perigos, gritavam: todos somos gregos. O tempo passou, isso tornou-se ainda mais atual. Todos sabem (até pelos perigos internacionais) que precisamos de apoiar os gregos, com europeus. E ouvimos Kavafis no seu belíssimo poema Ítaca, que é um autêntico hino de uma Europa que sabe que não sairá da crise se não reunir esforços e energias, lembrando-nos de Odysseos e de Ítaca. De que estamos a falar quando falamos de Europa? Do que se trata é de perceber as raízes e as diferenças, para que as complementaridades se não tornem inúteis. E se falo de Kavafis e de Pessoa, não deixo de referir Sophia, a poeta que melhor compreendeu porventura o universalismo do Mediterrâneo, a começar na Grécia e continuando a oriente (em terras que hoje trazem tantas ameaças e tanto risco de destruição). Oiçamos três apontamentos, que não posso deixar de lembrar quando atravesso a muito agitada Plaka, com os restaurantes cheios com a alegria de quem celebrava a luz e o sol do sul, muito para além as vicissitudes quotidianas, que muitos desejam esquecer. «Quando partires de regresso a Ítaca, / deves orar por uma viagem longa, / plena de aventuras e de experiências. / Ciclopes, Lestrogónios, e mais monstros, / um Poseidon irado – nãos os temas, / jamais encontrarás tais coisas pelo caminho, / se teu pensar for puro, e se um sentir sublime / teu corpo toca e o espírito te habita» (tradução de Jorge de Sena). O dois outros textos são de Sophia, que não poderia deixar de guiar nossos passos nesta viagem, falando da ilha de Hydra: «Odysseus – Persona / Pois de ilha em ilhas todo de percorreste / Desde a praia onde se erguia uma palmeira chamada Nausikaa / Até às rochas negras onde reina o cantar estridente das sereias». Mas ainda há mais. Não podemos esquecer nestas deambulações na cidade de Atenas o testemunho da poeta: «Fui ao Parhénon sozinha sob o sol a pique. Outras ruínas estão comidas, gastas, decaídas, velhas, desfeitas, como se a sua vocação fosse corromper-se e desfazer-se. Aqui não. Aqui tudo estoirou. É um eternidade despedaçada e vamos tropeçando nas pedras antigas. Aqui a vocação é de eternidade (…). Tudo está quebrado, mas a presença do sagrado está inteira e é quase difícil de suportar, de respirar. É qualquer coisa mais do que a beleza. Caminho tonta de sol e de solenidade. Esta é a mais espantosa ruína por sua natureza própria, corruptível, mas que foi quebrada pelo desastre» (12.9.63). Felizmente, não apanhei o sol a pique. Eram 8,30 da manhã quando fui, o céu estava nublado e a temperatura amena. Ainda havia pouca gente e fui privilegiado, para compreender as obras extraordinárias que aqui têm lugar. Depois de mil vicissitudes e erros, agora procura-se restaurar e conservar, sem o amadorismo de há mais de um século. Os Propileus estão a ser alvo de uma ação notabilíssima, que a Europa Nostra reconheceu num dos seus grandes prémios. O pequeno templo de Atena Niké, à direita da escadaria que nos faz chegar aos Propileus, onde as coberturas são recriadas regressa à sua pureza… O Parthénon também está a sofrer uma ação intensa que procura tornar mais adequada a consideração deste centro vital da civilização. O Erechtéion – em honra de Atena e de Poséidon – completa o conjunto com a inconfundível tribuna das Cariátides, que nos extasia. E descemos, por fim, pelo teatro de Dionísio Eleuthéreus, abrindo caminho aos tempos áureos da cultura… «Oh! Lumière! Marbres! Monochromie! Frontons tous abolis, mais point celui du Parthénon, contemplateur de mer, bloc d’un autre monde, celui qui prend un homme et le place au-dessus du monde». Quem o disse foi Le Corbusier, capaz de compreender a força dos símbolos, que nos fazem lembrar Péricles dirigindo-se aos seus compatriotas, avisando-os da necessidade de não cometerem os erros da facilidade e do triunfalismo, nesse momento, em que a guerra do Peloponeso ditou que a potência marítima, à partida favorita, se deixasse vencer pela continental e pelo modelo de Esparta. E voltamos a reler o diário dessa visita de Sophia à cidade: «Quando saímos do Museu Nacional andámos pela cidade moderna, que é horrível, duma fealdade triste e sem explicação (…). Vamos ao fim da tarde ao mercado. Extraordinária abundância de fruta belíssima: melancias todas vermelhas por dentro, pêssegos, uvas, figos, tomates. Fruta, fruta, fruta. Nunca vi tanta fruita junta nem tão bonita». Mas em falando da Acrópole: «Beleza inigualável, leve brisa, mar brilhando ao longe. Maravilhoso o enquadramento da paisagem. Mar de pedras à roda do Parhénon. (…) Mas como Ulisses estou sempre a pensar na minha casa. Fazem-me falta notícias diárias». E vem-nos à lembrança «Um Adeus aos Deuses – Grécia» de Ruben A., descrição apaixonada da terra dos deuses, a que não falta esse mito fantástico do museu fechado, para que o escritor pudesse passear-se entre as estátuas, fazendo jus à obra extraordinária de Sophia «O Nu na Antiguidade Clássica»… Pode discutir-se tudo sobre a Grécia de Sophia, ou sobre Atenas de hoje e de ontem, ou sobre as crises atuais, mas a verdade, como Frederico Lourenço disse «Sophia inventou uma Grécia própria (…) É uma Grécia construída pelo olhar dela, uma geografia anímica que tem tanto de Grécia como de Portugal». O búzio de Cós diz tudo: «nele não oiço / Nem o marulho de Cós nem o de Egina / Mas sim o cântico da longa vasta praia / Atlântica e sagrada / Onde para sempre minha alma foi criada». Na visita ao novíssimo Museu da Acrópole, onde nos reunimos, conversámos, debatemos e almoçamos, pudemos usufruir a beleza dos vários tempos – épico, lírico, dramático. Que dizer de um programa cheio, desde a arqueologia antiga ao período bizantino, passando pela Ágora e pelo monte Pnyx, invocando a democracia grega, e os passos dados para o respeito da vontade dos cidadãos, alargando progressivamente o seu lugar ativo… Viemos celebrar o património cultural. Reconhecemos os prémios. O nosso grande prémio para «SOS Azulejo» foi o reconhecimento de um trabalho de pequenas formigas, para preservar o que tem valor. A inclusão do Convento de Jesus de Setúbal nos 7 projetos a merecer especial apoio foi uma responsabilidade especial. E mais do que Sólon e Pisístrato, é a voz de Clístenes que retemos, pela força de transformar a aristocracia em campo de decisão dos cidadãos…
Guilherme d’Oliveira Martins