A VIDA DOS LIVROS
de 3 a 9 de junho 2013
Teolinda Gersão no seu último livro (“Cadernos II – As Águas Livres”, Sextante Editora) presenteia-nos com um exercício que usou magistralmente em anteriores circunstâncias, designadamente em «Os Guarda-chuvas cintilantes». É o jogo com o tempo. «O eu surge como um feixe de possibilidades e o tempo é arbitrário, recortado de um calendário impossível».
JOGAR COM O TEMPO
Teolinda Gersão brinca com o tempo e sentimos um grande prazer nesse jogo. Sente-se o fascínio da construção do tempo: os acontecimentos sucedem-se, desde os pequenos episódios, simples e comezinhos, até à consideração da ética e dos valores. Os cadernos espelham-se uns nos outros, autónomos e interligados. Tropeçamos em «pedaços do mundo», de um puro acontecer… E que é a vida e a sua relação com a arte senão esse ligar com os pormenores? Estes cadernos, e os que se anunciam, como método intercalar, têm um caráter propositadamente ambíguo. São dificilmente classificáveis. São fragmentos, que a romancista experimentada, com provas dadas, utiliza magistralmente. E somos presenteados com esta «espécie de avesso das coisas», que constitui uma «dimensão rebelde à tirania racional». E confesso que obtive um genuíno prazer, ao usufruir destas notas – e comparei-as à obra de paciência das artífices dos tapetes de Arraiolos, à feitura da empreita algarvia ou à junção fascinante de pequenos farrapos numa espécie de caleidoscópio têxtil… Quando Teolinda Gersão me pediu para falar do seu último livro, aceitei com gosto, mas o gosto que tive em lê-lo ultrapassou em muito o que esperaria – depois do grande prazer que tinha tido ao ler «A Cidade de Ulisses». Quando estamos perante um valor seguro da nossa literatura, como é o caso, há garantias que, de antemão, não podemos ignorar.
O CENTENÁRIO DE KIERKEGAARD
Mas vamos ao que importa. Passa agora, como se sabe, o segundo centenário do nascimento de Soeren Kierkegaard, ocorrido em Copenhaga, a 5 de maio do ano da Graça de 1813, num ano louco de bancarrota, de depreciação monetária intensa e de mil incertezas nesse velho reino da Dinamarca. São, de facto, cíclicas as doenças económicas. O que invoco não tem a ver com essas perturbações, mas com uma experiência (porventura mais perturbadora), singular e mediúnica, que «As Águas Livres» relata. Não se trata, porém, da recordatória sussurrante da relação física e histórica entre os «olhos de água» e as «mães de água» (ou não fossemos, segundo o vulgo, um povo de poetas…), desde Caneças até às Amoreiras, passando pelas condutas do Caneiro e da Quintã, mas de uma ocorrência fantasmática, nesse apaixonante jogo do tempo. Eis a surpresa. «Kierkegaard aparece às vezes de visita» (assevera-se na página 122). E percebemos ser verdade. «Um dia traz-me (garante a autora) um livro debaixo do braço, numa tradução alemã (ou não fora Teolinda uma germanista emérita), e pousa-o ao meu lado sobre a mesa. Olha-me, sorrindo levemente. É um sorriso tímido e desafiante». Não sabemos, contudo, de que obra se trataria. Seria o «Diário do Sedutor»? Seria «O Desespero Humano», obra que estava a ser lida por Leonardo Coimbra quando o acidente trágico lhe ceifou a vida? Teria o fantasma repetiria agora essoutra aparição desse dealbar do funesto ano de 1936? O certo é que Adolfo Casais Monteiro completaria a tarefa de publicar a obra fascinante. Pouco importa as dúvidas. Interessa dizer que o espetro deixou uma invetiva: «- Depois de leres, diz-me o que achaste». E a autora comove-se ao vê-lo «dar meia-volta e ir-se embora, o seu ar desastrado, o corpo franzino, ligeiramente corcunda, a roupa antiquada e cheia de botões em que se movimenta com rigidez, como se se sentisse tão pouco à vontade dentro dela como dentro do mundo». Temos na retina o desenho caricatural de W. Marstrand… Depois de folheado o volumezinho, parece não haver dúvidas tratar-se do «Diário». «Mas que sabe ele de sedução?» – pergunta a interlocutora atenta. Ele que cultiva o Deus-demónio e a angústia, que carrega a maldição e a blasfémia um dia lançada pelo seu velho pai contra os céus, a quem a escritora pede incessantemente que deixe de ser louco e que viva, antes, o amor com Regina Olsen, o amor que ela, no fundo, ardentemente deseja. «Não tenhas medo de amar Regina». Neste jogo com o tempo, há, todavia, a procura de mudar o curso dos acontecimentos. E se ele, em lugar de fugir, pudesse dar-se e ser protegido da angústia e da perseguição do seu Deus-demónio, lembrando-se desse dia tenebroso na Jutlândia, de treva e maldição, tudo se alteraria. «E então li, em sobressalto (diz-nos Teolinda), o livro que ele trouxera». Estava diante de um sedutor improvável, impossível de definir, que sabia mais do que parecia. E não queria libertar-se da angústia, do Deus-demónio, da insegurança, do mundo infernal. Preferia tudo isso ao amor. E desejava escrever sobre tudo o que o atormentava. Era, afinal, a personificação da «agonia», no sentido antigo e helénico do termo, de luta entre sentimentos e argumentos opostos, como encontramos no sentimento trágico de Unamuno. E quando, apesar de criadora de mil subterfúgios para entender os mistérios daquela alma, a autora percebe que nada há a fazer, naquele desencontro imediato, resigna-se: «Durante muito tempo ele deixou de visitar-me. E quando voltou outra vez a bater-me à porta, não me perguntou nada sobre o livro». Não será, porém, a literatura ou a arte o modo de aprender a libertar-nos do inelutável e do absurdo?
CONTEMPLAÇÃO CARINHOSA DO DESESPERO
Numa fórmula feliz, designando Kierkegaard como «quinto evangelista», Pedro Mexia fala de «contemplação carinhosa do desespero». O desespero seria, assim, a consciência da imperfeição, do caráter incompleto do ser e a exigência das verdades incómodas da encarnação, da ressurreição e do Espírito (cf. Expresso, 11.5.13). E lembramo-nos do entusiasmo com que João Bénard da Costa se propôs estudar o pensamento do dinamarquês, seguindo porventura os passos de Unamuno no aprendizado da difícil língua de Hamlet. No entanto, o tempo dos compromissos académicos imediatos não permitiu esse devaneio… Eduardo Lourenço (ainda ele), no segundo volume da sua «Heterodoxia» (1967), dá a resposta de que precisaríamos para resolver o estranho enigma, sobre a pretensão efetiva do filósofo. E fala-nos de Soeren Kierkegaard como espião de Deus («servo da inominada realidade anterior à separação da nossa treva e da nossa luz, é ele o guarda do Homem. Por isso, os fraternos ‘inimigos do homem’ serão sempre contra ele»). Os génios são como a tempestade, porque com ela se confundem, agravando-a e purificando a atmosfera. «Ele prevê a revolução que começa apenas a tornar-se real e ao mesmo tempo a grande tempestade durante a qual ser ‘cristão’ será outra coisa que dormir no conforto de uma existência onde as exigências cristãs se tornam irrisórias ou formais». Eis por que razão o «instante» exige sempre uma «escolha». A questão não é de palavras, mas de existência.
Guilherme d’Oliveira Martins