A VIDA DOS LIVROS
de 13 a 19 de maio de 2013
Carlos Queiroz (1907-1949), autor de «Desaparecido» (1935) e de «Breve Tratado de Não Versificação» (1948) foi um dos poetas mais significativos do segundo modernismo português, quer pelo talento e originalidade, quer por ter sido o elo que permitiu o contacto do movimento da revista «presença» com a geração do Orpheu, em especial com Fernando Pessoa e Almada Negreiros.
QUEM FOI CARLOS QUEIROZ?
Muitas vezes se refere como um caso inexplicável a insuficiente notoriedade de um dos poetas mais importantes da sua geração. De facto, para quem lê a obra de Carlos Queiroz, fica a ideia nítida de que estamos perante um autor maior com uma personalidade própria, com uma sensibilidade bem marcada e com um domínio da língua e da cultura portuguesas, no qual a modernidade se articula com um conhecimento seguro das raízes, o que o torna a um tempo original e ciente de que a língua tem uma continuidade que vem dos seus maiores cultores históricos. Como afirmou Fernando J. B. Martinho: «pela delicada musicalidade dos versos, Carlos Queiroz» foi «exemplo maior da persistência da tradição simbolista». E David Mourão-Ferreira diz lapidarmente: «Carlos Queiroz aprendeu, como poucos, a lição dos clássicos; assimilou também os jogos dos barrocos, o rigor dos arcádicos; ouviu igualmente o canto da sereia dos românticos; e foi moderno, foi inclusive modernista, mas, para além dos formulários dos modernistas ou do que a modernidade possa ter de precário. Entre os simbolistas, no entanto, é que ele viria a encontrar os seus mais próximos antepassados». Aqui se diz quase tudo. E sentimo-lo, a cada passo, quando o lemos. Neste sentido, longe de qualquer lógica de grupo ou mesmo de uma redução particularista de identidade fechada, o poeta insere a condição de português numa preocupação cosmopolita e universalista. E o certo é que esta distinção faz especial sentido em Carlos Queiroz por diversas razões: antes de mais, o poeta foi um grande leitor quer dos autores contemporâneos quer dos clássicos; conhece bem as literaturas francesa, alemã e italiana, toma contacto com autores críticos de tribalismos e nacionalismos – como Marcel Arland, que se afastará da «Nouvelle Revue Française» de Drieu de la Rochelle. Por outro lado, procura, a um tempo, os valores essenciais e os problemas permanentes, à semelhança das preocupações não só da revista «presença» de Régio, mas também da «Revista de Portugal» de Nemésio, na qual colaborará sobretudo depois da morte do seu amigo Fernando Pessoa.
O INTERESSE PELO TEMA PORTUGAL
O tema Portugal preocupa-o, mas não como questão ideológica, e sim como tema simbólico e vivencial – o que o diferencia do registo nacional e o aproxima das preocupações existenciais que a incerteza da crise e, depois, a guerra determinariam, para além da conjuntura social e política. É muito sintomático que Queiroz diga: «Isto de ser poeta português / Não é tão simples como imaginais. / Vede em Camões, Antero e Pascoaes / O que essa estrela dúplice lhes fez // (…) Gomes Leal, Cesário Verde… tantos! / Se fossem doutro povo, doutra raça / Seriam geniais, – mas sem desgraça. / Os poetas, aqui, são como os Santos: // Não conhecem os frutos dos seus prantos / E a glória é póstuma ilusão que passa» (in «Epístola aos Vindouros e outros Poemas», organização de David Mourão-Ferreira, 1989, p. 28). Ao invés de qualquer simplificação, eis que o poeta invoca a distância e a «desgraça». Não conhecer os frutos dos prantos é sinal de incompreensão. E se há glória, ela é póstuma e é ilusão passageira. E dirá também, fora de qualquer glorificação: «Português e vivo / É diminutivo. / Só fizemos bem Torres de Belém». A ironia é propositada, e não significa desinteresse ou indiferença, mas sim apelo crítico e recusa de um autocomprazimento. O surrealismo poderia usar a mesma metáfora… Portugal é o que é, não ilusão, não passado, mas realidade imperfeita. E, projetando o passado, como pessoal e coletivo, dirá: «Ah o passado, o passado! Que ventoinha, que remoinho / Que sorvedouro inexorável»… E David Mourão-Ferreira insiste nesse cosmopolitismo de Carlos Queiroz, singularizando-o na participação na revista «presença» (1927-1937): «será das raras (colaborações) que virão conferir um caráter menos “provincial” e mais equilibradamente desenvolto à produção poética de quase todo o grupo». Aliás, no número 1 da revista «Litoral», que irá dirigir, Carlos Queiroz fala (1944) de um projeto «sem abstrair qualquer ordem de questões e interesses profundamente humanos e vitais», pelo que «aplicar-se-á, de preferência ao estudo e valorização desinteressada dos motivos eternos, dos valores essenciais, dos problemas permanentes». Há, pois, uma tentativa de imersão total na poesia como arte, como «literatura viva», e o poeta assume o seu próprio caminho, com repercussões clássicas e simbolistas. Em «Ode Pagã», publicada em 1948, desvanecem-se dúvidas: «Ilusões! A cultura, o amor, a poesia… / Não igualam, sequer, um dia à beira-mar, / Vivido plenamente, a sorver, a beijar / o vento e a maresia! // Viver é estar assim: a fronte ao céu erguida, / Os membros livres, as narinas dilatadas; / com toda a natureza, em espírito, as mãos dadas… / – O resto não é vida!». Em lugar de abstrações, é a vida que importa, e não receitas ou invetivas, palavras vazias…
UMA LEITURA REVELADORA
Em 1942, ano de tantas incertezas, Queiroz lê «Essais Critiques» de Marcel Arland, e sublinha a lápis cuidadosamente o que lê: «Non je ne souhaite un art à tendances moralisatrices, mais un art où s’expriment nos préoccupations essentielles». E também concorda com o ensaísta quando este diz que a literatura deve ser um esforço para a verdade… E, mais adiante, pensando decerto em Portugal: «Un pays ne subsiste qu’en se transformant, non pas en devenant un cloître où l’on célèbre le culte des reliques». A vida tem, no fundo, essa vocação mutante. E há uma recusa do isolamento. De novo, temos o sentido cosmopolita. E Marcel Arland representa em 1942 o contraponto ao que significará o magistério de Drieu na casa Gallimard. Afinal, um país, segundo o escritor francês sofre sempre as influências que merece, quer quando as recusa quer quando as atrai. A leitura de Carlos Queiroz é assim crítica. Ao invés do isolamento e da autarcia, sentimos uma pulsão de abertura e de transformação. A ironia poética tem uma força especial. E o mais interessante é a insistência dos sublinhados no tocante à exigência de distância política (a crítica da propaganda soviética e americana), sem que isso possa significar anomia ou indiferença. «Une œuvre, un écrivain ne m’intéressent qu’autant qu’ils échappent à une génération». Se dúvidas houvesse, eis que o poeta rompe com a facilidade e a moda. É a arte, com todas as consequências, que está na ordem do dia!
Guilherme d’Oliveira Martins