A VIDA DOS LIVROS
de 8 a 14 de abril 2013
Pedro Tavares de Almeida e Javier Moreno Luzón coordenaram um interessante volume em que participaram os melhores especialistas ibéricos em matéria de história eleitoral. O título «Das Urnas ao Hemiciclo – Eleições e Parlamento em Portugal (1878-1926) e Espanha (1875-1923)» integra-se na excelente coleção Parlamento da Assembleia da República. Os volumes já publicados são em regra de excelente qualidade, e este constitui um acervo de grande importância, indispensável para uma reflexão informada sobre os sistemas políticos pluralistas no período considerado.
PORTUGAL E ESPANHA EM CONFRONTO
Falar de sistema político e de pistas de reforma obriga a conhecer não só a história política (cada vez mais relevante), mas também a evolução do Estado e as suas relações com a sociedade. No nosso caso, isso é indispensável por termos um Estado multissecular que precedeu a nação, que tem desempenhado um papel essencial como fator de coesão social e territorial. Daí a pertinência dos estudos políticos comparados e, em especial, a consideração da experiência da vizinha Espanha, com quem temos uma relação muito mais significativa do que possa parecer à primeira vista. O estudo comparado permite compreendermos que os países ibéricos tiveram aproximações, diferenças e complementaridades dignos de especial atenção. O ponto de partida da obra «Das Urnas ao Hemiciclo» em relação a Espanha é o início da chamada «Restauração», que restabeleceu a dinastia Bourbon na figura de Afonso XII, correspondendo à abertura de um ciclo de relativa acalmia política, assente num «sistema de turno» (idêntico ao nosso rotativismo), baseado num pacto entre os dois principais partidos dinásticos (conservador de Cánovas del Castillo e liberal de Práxedes Sagasta), que alternaram no governo sob o beneplácito régio. A influência portuguesa deve ser referida, mas não houve um padrão de estabilidade governativa, apesar dos efeitos positivos da acalmação. O período em análise termina com o pronunciamento militar de Miguel Primo de Rivera, sob os efeitos da grande guerra e antes do terrível conflito civil. No caso português, as raízes do rotativismo vêm mais detrás, do fim do governo de Costa Cabral, do golpe da «Regeneração» (1851) e do Ato Adicional à Carta Constitucional de 1852, mas o objeto de estudo neste volume inicia-se num momento fundamental, em que sob o governo regenerador de Fontes Pereira de Melo se adotam reformas integradoras: expansão generosa do sufrágio eleitoral e descentralização administrativa. Neste período verifica-se a consolidação do «rotativismo» entre regeneradores e progressistas (de Braancamp), com a criação de uma cláusula de proteção de minorias (1884) e a adoção de novos critérios de recrutamento na Câmara dos Pares, com abolição do critério hereditário (1885).
O FIM DO SÉCULO XIX PENINSULAR
Ao contrário da homogeneidade do período espanhol da «Restauração», no caso português presenciamos o fim da monarquia constitucional e a implantação republicana (1910) – o que leva, naturalmente, a que as nossas análises deem especial ênfase aos elementos de rutura entre os dois regimes. No tocante às normas e comportamentos eleitorais, há também divergências e convergências. Nas diferenças, temos uma maior estabilidade normativa em Espanha, que apenas regista três reformas (1878, 1890 e 1907) contra as onze portuguesas (seis das quais até 1910); havendo um caminhar em sentidos opostos no tocante à extensão do sufrágio – Portugal abre generosamente em 1878 a capacidade eleitoral (com a passagem de cerca de 500 mil para mais de 800 mil eleitores inscritos), tendo direito a voto todos os chefes de família varões, independentemente de nível de instrução e rendimentos, retrocedendo em 1895 e mais ainda em 1913, enquanto em Espanha o sufrágio universal masculino de 1869 é substituído pelo sufrágio censitário em 1878, voltando a universalizar o voto em 1890. Em Portugal, é muito intenso o debate entre a lógica uninominal e a proporcionalidade, merecendo ainda referência a lei de 1901 (conhecida como «ignóbil porcaria») que visou ligar círculos rurais e urbanos, para prejudicar nas cidades republicanos e a cisão regeneradora de João Franco. Nas aproximações, a lei portuguesa de 1884 é decalcada no sistema espanhol de 1878. As analogias são, no essencial, evidentes: fraca participação cívica, caciquismo, supremacia das candidaturas governamentais. Na consistência governativa, há diferenças: entre 1878 e 1910, menos de um quinto dos governos portugueses caíram devido à falta de apoio parlamentar, enquanto a regra espanhola foi a contrária – mais de metade dos executivos caíram no parlamento. Já depois de 1910, com a República em Portugal, a tendência inverteu-se até pela necessidade de coligações, mais frágeis do que os governos monopartidários do rotativismo.
IMAGENS QUE APROXIMAM E DISTINGUEM
As imagens literárias, jornalísticas, iconográficas e de humor sobre o parlamentarismo têm óbvio parentesco, coincidindo na decadência finissecular – o «ultimato» inglês de 90 em Portugal e o desastre de 98 em Espanha, com a independência de Cuba e a perda das colónias de Porto Rico e das Filipinas, com sequente deslegitimação do constitucionalismo liberal. Paulo Silveira e Sousa e Maria Manuela Tavares Ribeiro, no caso português, e Javier Moreno Luzón, no país vizinho, dão-nos belíssimos panoramas que nos permitem uma leitura integrada da evolução. Lembre-se «As Viagens na Minha Terra» de Garrett, «O Prato de Arroz Doce» de Teixeira de Vasconcelos, «Mário» de Silva Gaio, «A Queda de Um Anjo» de Camilo (Calisto Elói é um paradigma), «A Morgadinha dos Canaviais» de Júlio Dinis (o conselheiro Bernardo é um modelo), «As Farpas» de Eça e Ramalho, «Os Maias» de Eça de Queiroz (além dos inefáveis Conselheiro Acácio, Alípio Abranhos e Pacheco) e o esquecido, mas fundamental, Carlos Malheiro Dias de «Os Teles de Albergaria», além da caricatura de Rafael Bordalo Pinheiro até Leal da Câmara, da fotografia de Joshua Benoliel e das pistas abertas desde «A Águia» até «Orpheu»… E não se esqueça que Pérez Galdós ou Juan Valera são presenças constantes na proximidade crítica e literária luso-espanhola. Os textos são eloquentes pelo diálogo que comportam, num fenómeno comum que Manuel Azaña define como «uma crosta que esconde uma chaga». Para as lições atuais, devem ler-se as sínteses, claras e didáticas, de Fernando Catroga sobre o «complexo» cartista no republicanismo parlamentar, de João B. Serra sobre a visão atual da Primeira República e de Carlos Dardé sobre o debate político espanhol. No caso português, Fontes Pereira de Melo é uma sombra intensa, no caso espanhol, temos Cánovas del Castillo, figura ambivalente com uma influência decisiva na criação de um compromisso e de um consenso que dominam o primeiro período em causa. São eles que permitem aprofundar a ideia de representação de uma alternância, que favorece a duração e a legitimidade constitucionais.
Guilherme d’Oliveira Martins