A VIDA DOS LIVROS
de 1 a 7 de abril 2013
Óscar Lopes (1917-2013) foi mais do que um pedagogo da Literatura Portuguesa, foi não só um analista inteligente e conhecedor com uma rara capacidade para realizar sínteses claras, que permitem compreendermos as continuidades e as mudanças ao longo do tempo, mas também um crítico capaz de entender as inovações duráveis e as qualidades dos novos autores, comparando-os com os consagrados. A obra «Antero de Quental – Vida e Legado de uma Utopia», Caminho, 1983, é um exemplo dessas características.
ARTÍFICE DA HISTÓRIA DA LITERATURA PORTUGUESA»
Poucos dias após a invocação que o CNC fez no Centro Cultural de Belém na passagem dos vinte anos da morte de António José Saraiva, já não tendo podido corresponder ao nosso pedido para enviar um depoimento sobre o companheiro da «História da Literatura Portuguesa» (Porto Editora), Óscar Lopes deixou-nos. Tive o gosto de o conhecer pessoalmente e de com ele conversar, em Coimbra, já lá vão duas décadas, sobre a amizade de Antero e Oliveira Martins e dessa extraordinária complementaridade entre a «sentimentalidade» do poeta das «Odes Modernas» e a pulsão ativa do historiador de «Portugal Contemporâneo». Estivemos de acordo! Óscar Lopes era um estudioso incansável nos domínios da Literatura e da moderna linguística – e acreditava profundamente na capacidade da arte mudar socialmente o mundo. Era, no entanto, um leitor muito atento das obras que analisava, não se deixando influenciar por fatores subjetivos ou preconceitos. Foi assim dos primeiros a reconhecer a qualidade de escritores que foram recebidos com desconfiança por razões ideológicas, mas nos quais logo viu a qualidade ou o espírito inovador, que os viriam a consagrar, como no caso de Agustina. Sendo muito diferente de António José Saraiva formou, porém, com ele uma equipa que funcionava com equilíbrio e complementaridade, o que, aliás, permitiu que esse «tandem» pudesse subsistir apesar das vicissitudes do afastamento ideológico entre os dois. Se António José Saraiva era um intuitivo, capaz de abrir pistas extraordinariamente fecundas, que a investigação viria muitas vezes a confirmar (lembramo-nos dos receios de Lindley Cintra em relação a certos repentes de Saraiva), Óscar Lopes era um analista muito sereno e seguro, de uma racionalidade persistente. Deve dizer-se que não é possível compreendermos hoje a História da Literatura Portuguesa, não apenas no olhar do século XX, sem recorrer ao transcurso da obra fundamental que os dois companheiros desenvolveram. Muitas vezes se disse que talvez tenha faltado uma revisão global. Contudo, é importante uma leitura crítica capaz de articular o espírito do tempo e a apreciação do lugar de cada época, obra e autor no contexto da cultura portuguesa – e nesse ponto Óscar Lopes dá-nos uma leitura literária, enquanto António José Saraiva abre portas no domínio da cultura portuguesa. Aliás, a iniciativa coube a Saraiva, no final dos anos quarenta, consciente da necessidade de preencher um vazio existente no panorama pedagógico. E o certo é que, apesar de todas as resistências políticas, a obra afirmou-se por si – e tornou-se incontestavelmente referencial, superando em muito o âmbito meramente escolar ou pedagógico.
VIDA E LEGADO DE UMA UTOPIA
Referindo-me à obra que nos aproximou («Antero de Quental – Vida e Legado de uma Utopia», Caminho, 1983) encontro aí as qualidades de Óscar Lopes, sempre com forte preocupação didática, usando da sistematização e da clareza como apanágio próprio. Ao invés, António José Saraiva preocupava-se com a abertura iconoclasta do sentido crítico. A «desorganização» e a organização das ideias funcionavam, assim, como faces da mesma moeda – mas a consistência fundamental da «História da Literatura» resulta da ligação. Antero de Quental era uma referência especial para O. Lopes, pela complexidade e pela ambiguidade: «o seu estilo de prosador vai de um romantismo sentimental ou oratoriamente enfático (como é natural, predominante na juventude e nas solenes tomadas públicas de posição ética) a um equilíbrio de “clássico” oitocentista. Os poemas extensos (odes ou alegorias) oscilam (…) entre um romantismo humanitarista polémico e um romantismo de negrume pessimista e noturno. Passando por alto outras tonalidades instáveis (a glorificação helénica pagã, o “satanismo” baudelairiano e algo mefistofélico-goethiano, certos momentos da lírica amorosa tocantemente simples, e estranhos, ocasionais e inconscientes laivos perversos, no sentido neutralmente psicanalítico do termo) – a sua arte poética mais consumada é a de um soneto com algumas raízes camonianas ainda à vista, predominando aspetos de umas extraordinária e rápida atualização em relação ao meio, que fizeram em Portugal escola até já depois de bem entrado este século». Camões, Herculano e João de Deus são essenciais referências poéticas, o que para muitos permite ver o lastro romântico. Nemésio, por exemplo, encontra ecos de Bocage, no entanto, é muito mais do que isso – o que há é uma continuidade melancólica e racional. «Há ainda talvez mais evidentes estigmas de um romantismo visionário, com o claro-escuro, ou a simples gradação sombria entre o negro e o pardacento (de qualquer modo sempre acromático) do vocabulário predileto». E Óscar Lopes fala da desproporção entre o poeta solar, revolucionário e esperançoso, e o restante espaço, mais ou menos sombrio.
LITERATURA COMO RAZÃO
«Antero, pensador político, e sobretudo poeta, paira numa dramática e complicada ambiguidade» – diz o crítico. «Nós é que temos de escolher o nosso Antero, de um modo tão criador quanto o grau de verdade histórica a que nos atrevemos, ou a que (mais ou menos inconscientemente) nos recusamos. Nessa linha, Óscar Lopes encontra sete veios fundamentais: uma apologia moral sentimental, um idealismo panfletário no sentido da mudança social, uma teoria da missão cívica da poesia, da literatura e da arte, um socialismo proudhoniano, um humanismo aberto, e uma filosofia da imanência dos valores à intimidade humana ou idealismo subjetivo que visa fundar a ação política. Nesse caleidoscópio, compreendemos a ligação ao amigo Oliveira Martins, o seu alter-ego ativo e a principal amarra que o liga à vida política – devendo acrescentar-se que não há na literatura portuguesa um tão nítido caso daquilo que a psicanálise teorizou com «inconsciente pulsão da morte» – «uma ânsia de regresso à máxima entropia inorgânica, ou talvez simplesmente uma sensibilidade não-humana ou não-consciente, ânsia contra a qual reage umas vitalidade sob a forma de lucidez, mas reduzida a uma estratégia retirada em boa ordem». Óscar Lopes descobria as essências.
Guilherme d’Oliveira Martins