A VIDA DOS LIVROS
de 11 a 17 de março 2013
«Justice for Hedgehogs» (Harvard Press, 2011), «Justiça para Ouriços» (tradução portuguesa, Almedina, 2012), foi uma das últimas obras de Ronald Dworkin (1931-2013), na qual, partindo da distinção de Arquíloco, popularizada por Isaiah Berlin, contrapõe as lógicas das raposas e dos ouriços. As raposas sabem muitas coisas e o ouriço sabe uma coisa muito importante. Dworkin fala-nos do direito como um domínio fundamental centrado na dignidade humana, afirmando-se como um dos filósofos do Direito contemporâneos mais significativos.
UM PENSADOR DOS NOSSOS DIAS
Era uma personalidade fascinante, gostava do convívio, da boa mesa e da boa conversa, era um viajante apaixonado, um pescador experimentado, que circulava entre uma acolhedora cocheira reconstruída em Nova Iorque, a natureza de Marthas’s Vineyard (Massachsetts), a cidade universitária Oxford e a aristocrática Belgravia, em Londres. Esse era o circuito das suas casas, que correspondiam a um gosto requintado pela hospitalidade, pela amizade e pela família. Com elementar justiça, disse-se de Ronald Dworkin, falecido na sua casa de Londres, há alguns dias, que foi o mais original e influente filósofo do direito do seu tempo. É verdade. O futuro tenderá a confirmá-lo. Os seus livros e artigos, em especial na «New York Review of Books» (NYRB), na qual sentiremos a falta da sua presença, sempre acutilante e tantas vezes inesperada, por inovadora, bem como o seu magistério pedagógico em Inglaterra e nos Estados Unidos, contribuíram decisivamente para abrir novos horizontes, a partir do entendimento, levado às mais fecundas consequências, de que o direito baseia a sua autoridade no que designamos, em linguagem comum, por virtude moral. Pessoalmente, desde 1980, sinto que foi dos autores que mais me influenciou, em especial no domínio académico, mas também no político, ao lado de Michael Walzer, apesar das diferenças entre ambos, mas considerando as preocupações comuns pela justiça, igualdade e dignidade. Nascido nos Estados Unidos, em Worcester, Massachusetts, filho de pais separados, de Madeline Talamo, muito dotada pianista clássica, decisiva no apoio à formação de seus filhos, e de David Dworkin, de origem lituana, estudou filosofia com Willard Quine, em Harvard, e informalmente com J. L. Austin. Aliás, como aluno do Magdalen College, de Oxford, a sua prestação académica foi de tal ordem e teve tanta relevância e reconhecimento, que o titular da cadeira de jurisprudência, o celebrado H. L. A. Hart, pediu para ler as provas do jovem e para falar com ele. Mais tarde, apesar das diferenças de pensamento, Ronald Dworkin viria a suceder-lhe na cátedra no ano de 1969, onde se manteve até 1998, altura em que assumiu a cátedra em Londres. O brilhantismo intelectual projetou-se logo na vida jurídica ativa, tendo sido assistente do juiz Billings Hand e associado no importante escritório de advogados Wall Street Sullivan & Cromwell. No entanto, depressa foi atraído pela vida académica, como professor de Direito, exercendo a docência nas Universidades de Yale, de Nova Iorque, de Oxford e na University College of London. É muito significativo verificar como o seu espírito inovador e polémico se impôs mesmo junto daqueles com quem se defrontou criticamente, que, aliás, reconheceram a qualidade excecional do crítico e a grande seriedade dos seus argumentos. Enquanto Hart era um positivista de créditos firmados, Dworkin contrapôs a essa conceção o primado dos direitos fundamentais da pessoa e a necessidade de compatibilizar os diversos pontos de vista no tocante aos valores éticos. «Taking Rights Seriously», de 1977, é uma obra fundamental da filosofia jurídica do século XX.
UM HERDEIRO DO «NEW DEAL»
Personalidade de trato muito afável, era temível no discretear de argumentos filosóficos e jurídicos, e era isso que impressionava os seus adversários no campo das ideias. Aliás, apesar de ter tido as melhores relações com personalidades conservadoras, foi sempre um denodado defensor da herança de Franklin Delano Roosevelt e do «New Deal». Pode dizer-se, porém, que todos aqueles com quem polemizou reconheceram o valor excecional do encontro com Dworkin – Hart, Rawls, Rorty e até o conservador Robert Bork, com quem dirigiu um curso na Universidade de Yale nos anos sessenta. Muitos se lembram do impacto das críticas feitas no final dos anos setenta a decisões do Supremo Tribunal Federal dos Estados Unidos: «se a questão de que se trata afeta os direitos pessoais ou políticos fundamentais, e podendo sustentar-se que o Tribunal Supremo tenha cometido um erro, uma pessoa está no seu direito social de se negar a aceitar que a decisão seja conclusiva». Na perspetiva de R. Dworkin, a liberdade deve ser entendida sempre como envolvendo considerações de igualdade. Para ele, não seria suficiente a conceção negativa de liberdade, assumida por Isaiah Berlin. A liberdade não é apenas uma questão de processo, mas deve conter também elementos substanciais. Havendo um conflito entre liberdade e igualdade, deve prevalecer a «igual consideração e respeito», que permite superar a conflitualidade insanável entre os dois polos. Longe do positivismo de Hart, Dworkin rejeita a conceção de uma regra-mestra em cada sistema legal. Por isso, afasta-se da separação entre lei e moralidade, dando à dignidade humana um papel fundamental na concretização do direito, articulando o valor ético e a aplicação da norma, exigindo, deste modo, um vai-e-vem interpretativo, capaz de articular a aplicação do direito e a vida. Não há, assim, uma aplicação uniforme do direito, mas sim uma permanente exigência da diferenciação, contra qualquer discriminação. Esta capacidade de ir ao encontro da realidade social, tornou Ronald Dworkin um dos mais fecundos e influentes pensadores do Direito de hoje, como ficou bem patente nas centenas de artigos na NYRB, pondo a filosofia jurídica no centro dos grandes debates da sociedade e da cultura. Um dia perguntou: como pode uma Constituição condenar a crueldade e aceitar a pena de morte? Será que a pena de morte não é um exemplo tremendo de crueldade?
EM NOME DA DIGNIDADE HUMANA
O filósofo sempre considerou, em nome da sociedade humana, haver diversas etapas interpretativas de uma regra. Lembremo-nos das normas de cortesia. Num primeiro momento, a saudação a uma pessoa mais velha surge como natural; depois, a regra pode ser contestada ou posta em dúvida; e, num terceiro momento, pode haver uma rotura e mudar o entendimento, deixando, pura e simplesmente, de se saudar quem nos é estranho. Os institutos jurídicos devem, pois, ser vistos evolutivamente – e o sentido crítico passa a ser relevante na interpretação da norma jurídica. Na tradicional distinção de Arquíloco, celebrizada por Isaiah Berlin, entre as raposas e os ouriços, Dworkin salienta que prefere a lógica dos ouriços, segundo a qual importa que nos fixemos numa ideia fundamental que para o nosso filósofo seria a dignidade da pessoa humana: «se lograrmos alcançar uma vida boa, faremos das nossas vidas pequenos diamantes nas areias cósmicas». Enquanto as pessoas têm convicções morais, cabe ao direito definir os limites da ação do Estado para com a sociedade, respeitando os princípios orientadores desta. A «moral constitucional» não é, deste modo, uma moral comum, mas o conjunto dos princípios aos quais a sociedade liga a sua identidade, mesmo que alguns cidadãos não a ponham em prática.
Guilherme d’Oliveira Martins