A VIDA DOS LIVROS
de 11 a 17 de fevereiro de 2013
António Lobo Antunes acaba de subscrever o manifesto «A Europa ou o Caos», apresentado por um conjunto de prestigiados intelectuais europeus que apela à consciência dos governantes e dos cidadãos europeus no sentido de se empenharem ativamente na construção europeia como uma questão de sobrevivência.
Churchill no Congresso do Movimento Europeu de Haia, 1948.
UM MANIFESTO QUE APELA À AUDÁCIA
Com palavras duras e certeiras, o documento constitui um oportuníssimo alerta, em nome da paz, da democracia e da cultura. Assinam o manifesto, além de António Lobo Antunes: Vassilis Alexakis, Hans Cristoph Buch, Juan Luis Cebrián, Umberto Eco, György Konrad, Julia Kristeva, Bernard-Henri Lévy, Claudio Magris, Salman Rushdie, Fernando Savater e Peter Schneider. O título do documento é bem demonstrativo do momento dramático que atravessamos – «Europa ou o Caos» – e os autores têm no seu currículo bastante empenhamento cívico ativo para merecer a nossa máxima atenção. Quando os subscritores do texto afirmam que «a Europa não está em crise, está a morrer» lançam um apelo forte no sentido de regressarmos à ideia de Europa como «sonho e como projeto», segundo o espírito defendido por Edmund Husserl nas vésperas da catástrofe de 1939: a Europa como vontade e representação, como sonho e construção, que soube transformar-se numa ideia nova e que pôde construir a paz sobre os escombros deixados pela Segunda Grande Guerra, favorecendo a prosperidade e a democracia. Ora, essa Europa está a desfazer-se perante os nossos olhos, pelo que se torna indispensável encontrar respostas de cooperação e de vontade, que permitam evitar a tragédia. Estamos, pois, como já se disse, perante uma questão de sobrevivência. São a paz, o desenvolvimento, a democracia e a diversidade cultural que estão em causa. Naturalmente que há vozes cínicas a dizer que a fragmentação é inexorável, como a injustiça ou como a pobreza, contudo, temos de fazer tudo para evitar que a catástrofe regresse e devaste o velho continente e o mundo. O problema é cultural, político, económico e social. É cultural, porque tem a ver com a capacidade criadora, com a racionalidade e com o respeito mútuo. É político, porque obriga ao diálogo e à compreensão entre poderes e vontades diferentes, que procuram encontrar valores e interesses comuns. É económico porque exige o entendimento do valor e da gratuitidade, do que tem preço e do que não tem, pondo a capacidade de produzir riqueza ao serviço das pessoas e no lugar das aparências e da especulação. É social, uma vez que a confiança e a coesão têm de ter consequências no respeito pela eminente dignidade de todas as pessoas, sendo a liberdade igual e a igualdade livre faces da mesma moeda.
PROCURAR O QUE É COMUM
Naturalmente que há as divergências e a complexidade (que Edgar Morin enfatiza), no entanto importa integrar racionalmente a capacidade de regular os conflitos, as diferenças e as contradições, procurando entender os interesses e os valores comuns, em nome da igual consideração e respeito por todos (de que nos fala Ronald Dworkin). Não se trata, assim, de propor soluções utópicas ou idílicas, nem pacifismos que apenas abrem caminho à conflitualidade desregrada e conciliam com a especulação financeira, que agrava as injustiças e as desigualdades. Robert Schuman, um dos pais fundadores do projeto europeu, insistiu especialmente na procura gradual de pontes capazes de favorecer e de fortalecer o contacto entre diferentes realidades políticas e sociais, através da simultânea salvaguarda das diferenças e das complementaridades. E quando agora o Primeiro-Ministro britânico acena com o fantasma do eventual fim do Estado-nação e com o perigo do super-Estado europeu parece querer afastar-se do compromisso comum de construir o modelo de paz que Winston Churchill definiu no célebre discurso de Zurique. Se dúvidas houvesse, bastaria ver as preocupações agora explicitadas pelo Presidente Barack Obama. E não esqueçamos que foi a pensar na democracia e na Europa que Churchill recusou o demissionismo de Munique, em 1938. Compreendemos que as circunstâncias de hoje, setenta anos depois do fim da Guerra, num momento em que a memória tem de estar presente para recusar o ressentimento, sejam diferentes, mas o certo é que obrigam à recusa da fragmentação e do nacionalismo. A União Europeia não é um Estado, é uma realidade múltipla assente em Estados livres e soberanos. O federalismo não pode, assim, confundir-se com centralismo e tem de basear-se na participação dos cidadãos a todos os níveis.
RECUSAR A INDIFERENÇA
A indiferença, apesar de tudo, parece prevalecer. O manifesto recorda, aliás, como estamos longe do tempo em que pensadores e artistas de há duzentos anos se mobilizaram em nome da defesa da liberdade dos povos helénicos (em contraste com o encolher de ombros de agora) – Chateaubriand, Byron, Berlioz, Delacroix, Pushkin e Victor Hugo. Ora, o ideal da Europa de defesa de uma convergência de povos e Estados livres e soberanos obriga a que a soberania e a liberdade sejam defendidas não na lógica protecionista e fragmentária, mas como solidariedade e cooperação. E se Atenas é atingida, também o é Roma, sendo símbolo da distinção entre lei e direito, entre o ser humano e o cidadão. No fundo, estamos perante as bases mais sagradas da democracia. A lógica da especulação financeira parece ocupar o espaço da dignidade pessoal, da liberdade, da igualdade e do respeito mutuo, pedras ancilares do humanismo. E regressam os perigos dos populismos, dos chauvinismos, das ideologias de exclusão e ódio. Onde está, afinal, perguntam os autores, «a pequena internacional de espíritos livres que lutavam, há vinte anos, por essa alma europeia, simbolizada por Sarajevo, debaixo das bombas e vítima de uma desapiedada limpeza étnica?». O certo é que não basta a moeda única, é preciso que o Euro se ligue às economias e a fiscalidades convergentes, onde haja justiça distributiva. Sem União política, sem políticas partilhadas, sem regras comuns quanto à responsabilidade pelas contas, sem governo económico, tudo não passará de uma frágil quimera. «Sem unidade política (diz o manifesto), a moeda dura uns quantos decénios e depois, aproveitando uma guerra ou uma crise, dissolve-se». Daí porem o dilema: «União política ou barbárie», acrescentando: «federalismo ou explosão, regressão social, precariedade, desemprego disparado, miséria». No fundo, não estamos num momento de panos quentes e de ambiguidades: «ou a Europa dá um passo mais e decisivo, no sentido da integração política, ou sai da História, some-se no caos». Dentro desta preocupação, ao falar do «crepúsculo europeu», Eduardo Lourenço fala de uma «metamorfose sem precedentes», temendo que a Europa se dissolva «diante dos nossos olhos impotentes ou já anestesiados em qualquer próximo futuro que será tudo menos herança ou sublimação do nosso mítico património» (Público, 15.1.13). E Ulrich Beck insiste na necessidade de a Alemanha dizer se quer ou não uma Europa europeia e democrática. Estes são os pontos fundamentais, a que não podemos fugir. É a nossa própria vida que esta em xeque.
Guilherme d’Oliveira Martins