A VIDA DOS LIVROS
de 28 de janeiro a 3 de fevereiro de 2013
Em 1938, Pedro Calmon (1902-1985) publicou o livro «O Rei Filósofo – Vida de D. Pedro II» (Companhia Editora Nacional), onde podemos encontrar o percurso humano, político e cultural de uma das figuras mais enigmáticas e apaixonantes da história do Brasil. O historiador brasileiro viria a publicar mais tarde (José Olympio, 1975) uma obra monumental, em cinco volumes, «História de D. Pedro II», onde a vida do Imperador é escrutinada em pormenor, no contexto do seu tempo. No entanto, o livro de 1938 é ainda hoje o que melhor permite um conhecimento impressivo e humano da personalidade de D. Pedro II e das suas qualidades intelectuais e cívicas.
DE TIRADENTES A PETRÓPOLIS
(Notas de viagem) O longo caminho que nos trouxe de Tiradentes para Petrópolis fez-nos perceber a transição do cerrado para a mata atlântica, em descida vertiginosa da montanha para os vales dos rios, num dia fantástico de sol e calor. É o caminho novo da Estrada Real: Barbacena, Santos Dumont, Juiz de Fora, Matias Barbosa… Ao passarmos próximo de Juiz da Fora, lembramos Murilo Mendes, o grande poeta, marido de Saudade Cortesão, português de coração, a recordar o Aleijadinho: «Pálida lua sob o pálio avança / das estrelas de uma perdida infância. / Fatigados caminhos refazemos / Da outrora máquina da mineração»… Vamo-nos despedindo de Minas Gerais, com o nítido sentimento de que é uma terra familiar e de que fomos recebidos com uma invulgar e rara hospitalidade. E chegamos a Petrópolis, por onde os indígenas passavam, para vencer a chamada serra do Mar, no fundo da Baía da Guanabara. D. Pedro I aqui comprou a fazenda do Córrego Seco e seu filho assentaria arraiais, mais tarde, pedindo ao engenheiro Koeler que fizesse uma pequena cidade para acolher a família imperial. Aqui, depara-se-nos a catedral neogótica de S. Pedro de Alcântara (1884) com a sua torre imponente e uma sinfonia de vitrais. Neste lugar estão os restos mortais de D. Pedro II e de D. Teresa Cristina, bem como da Princesa Isabel e do Conde d’Eu. Almoçamos numa das acolhedoras residências da cidade imperial, com os cómodos de outrora e a qualidade gastronómica de hoje… Sentimos a presença forte de uma personalidade atraente como a do Imperador D. Pedro II (1825-1891), cientista e homem de cultura e arte desterrado na política, como ele próprio fez questão de repetir em várias circunstâncias. O Palácio, hoje Museu, construído no estilo neoclássico foi pago com recursos do próprio Imperador. A execução ocorreu entre 1845 e 1862, sob a direção de Julius Koeler, com alterações de Cristóforo Bonini. Mármores negros belgas e de Carrara, soalhos das melhores madeiras do Brasil, decorações nos tetos de grande requinte, eis o que encontramos. Em volta, há um jardim frondoso em que a arte de Jean-Baptiste Binot se juntou à sensibilidade científica do experimentado botânico que era o próprio D. Pedro de Alcântara. Proclamada a República, o palácio foi ocupado sucessivamente por duas escolas, até que, por iniciativa do Presidente Getúlio Vargas, foi criado o Museu Imperial em 1943.
A MEMÓRIA DE D. PEDRO II
A visita ao Palácio, com a generosa companhia do seu diretor, Maurício Ferreira, foi fascinante pela descoberta da convergência entre o drama pessoal do imperador e a capacidade que desenvolveu, com abertura e inteligência, para se tornar um fator fundamental na unidade brasileira e no prestígio internacional do país. O caso de D. Pedro II é, aliás, singularíssimo. O seu prestígio ainda hoje é recordado e ninguém esquece que no momento em que foi deposto, a 15 de novembro de 1889, muito poucos queriam que fosse afastado. Ninguém falava em proclamar a República, tratava-se apenas depor o governo, e o Marechal Deodoro da Fonseca, cabeça do movimento, ainda gritou para as tropas formadas em frente do Quartel-General: «Viva Sua Majestade, o Imperador D. Pedro II». O certo é que D. Pedro era, fundamentalmente, um homem do espírito, amigo de Wagner e de Pasteur, de Herculano e Camilo Castelo Branco, admirado por Nietzsche, Vítor Hugo e Darwin. Em respeito por isso, impediu os seus apoiantes de usarem de violência para recuperar o poder, tornando-se no exílio, paradoxalmente, um símbolo invocado por realistas e republicanos. Apesar de uma aura de prestígio intelectual e cívico, D. Pedro teve uma infância triste e difícil. Órfão de mãe, a imperatriz Maria Leopoldina, arquiduquesa de Áustria, com um ano, e sem o seu pai, que partiu para a Europa, tendo ele apenas cinco anos de idade, ficou com o duro encargo de assumir a coroa imperial. A sua educação foi entregue então ao célebre José Bonifácio de Andrada e Silva, a D. Mariana Verna, futura Condessa de Belmonte, e a um criado do Paço, velho herói negro da Guerra Cisplatina, de nome Rafael. Dedicado ao estudo e à leitura, viveu a sua infância e juventude só e ensimesmado, praticamente sem amigos. Mesmo assim, tornar-se-ia o «símbolo vivo da união da pátria». Aos 14 anos, foi declarado maior de idade e coroado imperador em 1841. Casado com D. Teresa Cristina das Duas Sicílias, teve a inteligência e a argúcia para conquistar prestígio, recebendo manifestações de popularidade e apreço, designadamente nas visitas que fez aos Estados do sul, tendo sido ainda obrigado a gerir, o que fez com prudência, três difíceis crises entre 1848 e 1852 (o conflito sobre a escravatura com a Inglaterra, a chamada revolta Praieira e o conflito com a Argentina). Nos anos sessenta, teve de lidar com o fugaz conflito com o Uruguai e com a sangrenta guerra do Paraguai, vencida pela tríplice aliança. Contudo, quando quiseram erigir-lhe uma estátua para o glorificar, preferiu usar esse dinheiro para apoiar as escolas… Patriota generoso, atraído pela literatura, pelas artes e pelas ciências, foi um viajante apaixonado. Muitos foram os episódios da vida de D. Pedro de Alcântara que lhe granjearam prestígio, mas foi a assinatura de duas leis antiesclavagistas – a do ventre livre (1871, estipulando que todas crianças nascidas de mulheres escravas após aquela data seriam consideradas livres) e a «lei áurea» (1888, assinada pela regente Princesa Isabel), ardorosamente defendidas pelo Imperador, apesar de muitas resistências do poder económico, que não só abriu horizontes no sentido da construção do Brasil como um país moderno e civilizado, como ainda criou condições para a proclamação da República.
A CIDADE MARAVILHOSA
A recordação dessa tarde passada em Petrópolis ficou bem marcada nas nossas memórias. E o regresso ao Rio de Janeiro, horas depois, foi um reencontro de amigos e de afetos. É sempre bom gozar de uma imersão total na cultura carioca, essa curiosa «casa dos brancos», usufruir o calçadão de Copacabana de Burle Marx e da engenharia portuguesa, com as sensuais curvas e as três cores, símbolos deste admirável povo plural, visitar a Candelária, ir à rua do Ouvidor (em honra de Francisco Berquô da Silva Pereira, ouvidor-mor da cidade), lembrar as raízes familiares de Bernardino Machado e a casa de Carmen Miranda, visitar o Centro Cultural do Banco do Brasil, passar pelo imponente Palácio dos Vice-Reis, inspirado na ala ocidental do velho Terreiro do Paço, almoçar no Clube Ginástico Português, visitar o Museu Nacional de Belas-Artes e recordar o pintor Pedro Américo. Mas é magnífico invocar as inesquecíveis visitas à Academia Brasileira de Letras, com a aristocrática receção de Marcos Vinícios Vilaça, e ao Gabinete Português de Leitura, graças à simpatia de António Gomes da Costa. E, no fim, no Mosteiro de S. Bento pudemos recolher-nos em silêncio perante uma das mais fulgurantes marcas da cultura luso-brasileira.
Guilherme d’Oliveira Martins