A VIDA DOS LIVROS
de 14 a 20 de janeiro de 2013
«Confissões de Um Poeta» (Difusão Europeia do Livro, S. Paulo, 1979), de Lêdo Ivo (1924-2012) é uma obra inesgotável de energia, onde se nota o poeta invocando, em todo o seu esplendor, a sua vida e os caminhos que ele trilhou. O testemunho que se segue homenageia o poeta, o memorialista, o ensaísta e o contista. Como diria Eugénio Lisboa: a obra é uma «espécie de pot pourri de grande classe, que não exclui ainda para nosso benefício, nem a máxima penetrante, nem, aqui ou ali, o apotegma visionário, ou a sentença firme, desenvolta e alada».
CORDIAL FAMILIARIDADE
«Na vida precisamos sempre de usar máscaras, pois ninguém nos reconheceria se nos apresentássemos de rosto nu» – disse um dia Lêdo Ivo, poeta, memorialista e símbolo fundamental da cultura da língua portuguesa. Aprestando-me a falar do último livro de Eugénio Lisboa, chegou-me a notícia do falecimento em Sevilha inesperadamente (a morte nunca se espera) de Lêdo Ivo, o poeta brasileiro sobre quem o nosso crítico disse, com inteira justiça, que é uma «figura maior da literatura brasileira de hoje». Por isso, Álvaro Lins o pôs no mesmo plano dos maiores. Conheci Lêdo Ivo na Academia Brasileira de Letras, graças à hospitalidade inexcedível de Marcos Vinícios Vilaça, nesse adorável «Petit Trianon», que foi o pavilhão da França nas celebrações do primeiro centenário da independência brasileira. Almoçámos num ambiente de cordial familiaridade e foi-me possível testemunhar, ele na minha frente, as qualidades da pessoa, que conhecia da aura e da escrita, como um dos símbolos da geração de 1945. Geração difícil, de transição, contradição e afirmação, que Alceu Amoroso Lima qualificou de neomodernista, com o seu quê de ambiguidade. Profundo admirador de Manuel Bandeira e de Carlos Drummond, depressa percebi que era homem de mais perguntas do que de respostas («Talvez as minhas perguntas sejam as minhas respostas»), com a sua atitude inquieta. Assim foi sempre, originando incompreensões dos que o julgavam menos audacioso do que os seus antecessores modernistas. E no entanto o tempo confirmou o valor seguríssimo da sua obra. «O sol fulgura no centro da minha noite. Ao meio-dia, caminho sob as estrelas» (diz nas «Confissões de um Poeta», p. 53). Longe do conformismo, o poeta não se deixava abater, atento à sua volta, mas sentia algo estranho. «Na literatura brasileira, ninguém caça, ninguém pesca, ninguém ama, ninguém vive. É uma literatura livresca, que só sabe respirar o ar bafado dos livros». Para o poeta, haveria que fazer a leitura do mundo. Eugénio Lisboa, numa recensão arguta e brilhante na «Colóquio – Letras» disse das «Confissões» que emerge do livro, «da sua escrita interrogativa, forte e feliz, a imagem de um personagem contraditoriamente inteiro, de um ser que une em si a integridade, a autonomia e a volúpia» (in «As Vinte e Cinco Notas do Texto», INCM, 1987). Foi esse poeta de olhar irrequieto que encontrei nesse almoço memorável. «Deus é um esteta e não um moralista», gostava de dizer, como repetia o nosso fraterno António Alçada. «O eu dos poetas e romancistas não é a primeira pessoa. É a segunda, ou a terceira, ou a primeira do plural». Afinal, o direito à volúpia tem de ser considerado com a liberdade entre os fundamentais. «A clareza das flores num vaso. A clareza do vinho num copo. Estes exemplos de exatidão e limpidez me ensinam mais do que as gramáticas e manuais de estilo». Essa «A Noite Misteriosa». E se corri a reler Eugénio quando ia mesmo falar dele, ao ter a notícia que não gostaria de ter, lembrei o sentimento contraditório tão evidente quando se fala de tantas crises: «em toda a ordem autêntica deve existir a nostalgia da infração e da licença». E confirmei, nessa refeição frugal e impecável, as qualidades de «atento, lúcido, inteligente, inteiro, amigo das palavras (e das sílabas!), mas não verboso – e “habituado por ofício a sonhar a realidade”». Sentia-se o sonhador que ligava constantemente as letras e a energia criadora – sendo capaz de ver no quotidiano o fundamento da poesia e da narrativa. Como diz Gilberto Mendonça Teles, falando, de «aventura da transgressão» em Lêdo Ivo, na «poesia, conto, romance, ensaio – o tradicional está em permanente diálogo com o novo, independente do gênero em que se manifesta: o seu processo criador funde as duas pontas do tempo literário, quer o poeta se encontre no centro de suas obras, na planície quase árida da Academia ou no alto das constelações de seu sítio nos arredores de Teresópolis».
UM POETA QUE SE CONFESSA
«Confissões de Um Poeta» é um grande livro e representa a imagem do autor dotadíssimo que o escreveu. Poeta e ensaísta, memorialista e narrador, Lêdo Ivo é, na língua portuguesa contemporânea o exemplo de um diálogo vivo de géneros e de culturas. E nesse livro singular vem a dúvida final que não é senão a demonstração do enorme talento no uso da língua e das ideias: «Afinal de contas, que livro é este que, como uma cesta de papéis usada às avessas, se vai formando em minhas gavetas, construído de sobras e excrescências, divagações e transvagações, composto com o que não serve para os outros livros? Uma autobiografia espatifada, um diário íntimo, o romance de uma inteligência, o fragmento de um intelecto ou de um instinto, o livro de bordo do navio da vida, um poema em prosa alvejado pelas mutilações e interrupções incessantes e inevitáveis». Ora, um grande escritor manifesta-se exatamente assim, quando menos se espera, e sem ter de pousar para a posteridade. É usando o seu talento puro que tudo se manifesta. Leia-se e releia-se o que nos disse, e tudo se tornará claro e evidente… O mestre da língua continua entre nós.
Oiçamo-lo:
«Acontecimento do Soneto
À doce sombra dos cancioneiros
em plena juventude encontro abrigo.
Estou farto do tempo, e não consigo
cantar solenemente os derradeiros
versos de minha vida, que os primeiros
foram cantados já, mas sem o antigo
acento de pureza ou de perigo
de eternos cantos, nunca passageiros.
Sôbolos rios que cantando vão
a lírica imortal do degredado
que, estando em Babilônia, quer Sião,
irei, levando uma mulher comigo,
e serei, mergulhado no passado,
cada vez mais moderno e mais antigo».
Guilherme d’Oliveira Martins