A VIDA DOS LIVROS
de 17 a 23 de Dezembro de 2012
Ao publicar «O Ano XX, Lisboa 1946 – Estudo de Factos Socioculturais» (INCM, 2012), José-Augusto França prossegue uma obra multifacetada, incansável e minuciosa, onde se têm incluído estudos de tempo, que nos permitem compreender os acontecimentos emblemáticos de determinados períodos, partindo daí para o entendimento do país e do mundo, uma vez que a história sociocultural permite chegarmos à visão de conjunto, sobretudo quando o cicerone é referência da história da arte europeia e mundial.
MEADOS DE QUARENTA
A leitura do tempo tem sempre magia e permite-nos partir daí para a perceção da vida. E o certo é que José-Augusto França é, de facto, um cicerone privilegiado como referência da história da arte europeia e mundial, como afirmou a Diretora-Geral da UNESCO, Irina Bokova, na bonita mensagem que enviou no dia em que o mestre perfez a bonita (e jovial, diga-se em abono da verdade) idade de nove décadas. Lembramo-nos de «Os Anos Vinte em Portugal» (1992), «Lisboa, 1898» (1998), «Lisboetas no Século XX – Anos 20, 40 e 60» (2005) e «O Ano X – Lisboa 1936» (2010), e esses antecedentes constituíram preciosos meios para a compreensão histórica de anos significativos. Desta vez, deparamo-nos no pórtico da obra com uma homenagem merecida e significativa, a um primeiro companheiro desses anos, um jornalista, ficcionista e etnólogo, que em 1946 (um ano depois de «Calenga») escreveu «A Maravilhosa Viagem dos Exploradores Portugueses», sendo obrigado a deixar na gaveta um romance de denúncia anticolonialista «Terra Morta». Falo de Fernando Castro Soromenho (1910-1968), exemplo de intelectual e resistente, analista lúcido da emancipação africana.
CELEBRAR O «ANO XX»
O «Ano XX» é um ano chave da chamada Revolução Nacional, o último a ser assinalado desse modo, já de fugida, ressoando a ironia imperial. É o ano a seguir ao fim da guerra e por isso parece ser de um certo alívio, apesar de todas as esperanças frustradas. E, quase surpreendentemente, ouve-se a voz de Oliveira Salazar a dizer: «Quando um país encontra, como Portugal, uma linha conveniente de pensamento e de ação política, assente e, segura experiência, é desassisado trocá-la, dando atenção às vozes, aliás, dissonantes, que se erguem das ruínas e das divisões da Europa a apregoar sistemas salvadores». Mas, no essencial, isso serve para concluir: «Não desejamos sair, pretendemos ficar». Mas, num tom de certo humor, o inefável «Borda d’Água», fazendo o juízo do ano, entre o conselho para plantar couves e orégãos e a indicação do tempo que faria, diz: «Estão todos a olhar uns para os outros como quem diz: Que vai sair disto tudo? E a resposta ninguém atina com ela». De facto, a obra procura, à distância do tempo, responder à questão em quinze capítulos, organizados com critério e minúcia. Começa com os ecos do fim da terrível guerra e com a revista «Time» a apresentar Salazar com o decano dos ditadores (uma maçã apodrecida e uma pergunta «Até que ponto em Portugal o melhor é mau»…). Armindo Monteiro regressara de Londres sob a suspeita de excessiva anglofilia (1943), mas agora havia que elogiar, sem alardes, a vitória aliada. De facto, havia leves esperanças, velhos republicanos como José Domingues dos Santos esperam que os ventos novos sejam propícios e regressam. Realizam-se eleições (Novembro de 1945), mas a continuidade prevalece. O ano de 46 é a charneira em que os aliados hesitam quanto à questão ibérica, por proximidade excessiva da guerra civil espanhola e por receio de mudanças bruscas. As prometidas «eleições tão livres, como na livre Inglaterra» tornam-se uma miragem. Francisco Valença no «Sempre Fixe» lembra ambiguamente para o ato eleitoral, o carneiro com batatas, comparado com as batatas a três escudos o quilo. O certo é que Salazar quis ficar, recusando a saída. O diretor da Reuters Douglas Brown é expulso por simpatias oposicionistas, como a revista «Time» passou a estar proibida… É o tempo da criação do MUD, Movimento de Unidade Democrática, criado em 8 de Outubro de 1945, ilegalizado em 1948, e José-Augusto França, com conhecimento de causa, fala-nos do processo das assinaturas e das intimidações, apresentadas por Marcelo Caetano ao contrário do que realmente aconteceu. A lista dos mais prestigiados intelectuais, que participam ativamente, é significativa: António Sérgio, Ferreira de Castro, João de Barros, Lopes Graça, Ramada Curto, Aquilino Ribeiro, Vieira de Almeida, Palma Carlos, Joaquim de Carvalho, Azeredo Perdigão, Vitorino Nemésio, José Régio, Casais Monteiro, António Pedro, Hernâni Cidade. Mas, naturalmente, a «situação» acena com o «perigo comunista». E o autor tem absoluta razão ao dizer que, agora para Salazar, era fundamental criar um «inimigo», sobretudo com a guerra terminada.
SALAZAR INCOMODADO COM A CRÍTICA
O Presidente do Conselho em 23 de Fevereiro de 1946 fala de «ideias falsas e palavras vãs» e é muito crítico, especialmente para as Nações Unidas, para a reconstrução e para o processo de Nuremberga – estando em causa episódios, complacências e cumplicidades bem próximos. O tema do império colonial vem à baila, com a lembrança da tradição republicana vinda do velho «ultimatum» inglês. Uma das curiosíssimas chaves da reflexão de José-Augusto França está no episódio que intitula significativamente como «Os Garotos». O que estava em causa era a perceção por Salazar do crescente sentido crítico que ia minando a base do regime, em especial relativamente aos mais jovens, que tomavam consciência da abertura e da modernização. Depois das eleições, ganhas inevitavelmente pela União Nacional, o líder quis ouvir os colaboradores. Afinal, o país legal «não se imbuíra dos princípios ideológicos e morais com que o Estado Novo pretendia definir-se». Segundo Franco Nogueira, Salazar «exasperado com os ataques a que assistira e que procuravam também feri-lo, não pudera conciliar o sono» numa determinada madrugada, «considerando que, perante as críticas que a si próprio via dirigidas, devia ir a Belém apresentar a demissão ao Presidente da República… Porém, pelas 5 horas da manhã, tomara uma decisão, dizendo de si para si, o que na manhã seguinte revelou ao ministro das Finanças que o veio visitar e que Lumbrales, só ele, podia contar ao narrador. O que o chefe então lhe disse foi exatamente: “Ora, são uns garotos”. Após o que adormecera tranquilamente». E tudo continuou. A I Conferência da União Nacional (11 de Novembro) pretendeu dar um impulso ao regime. Salazar apareceu, apesar da crise neurasténica, enquanto o atento Marcelo Caetano encerrou, notando-se uma luta de protagonismo com Santos Costa, que proferira em Braga o discurso do 28 de Maio. Ao longo do livro vai-se tomando pulso ao tempo: a literatura, a vida artística, o cinema, o teatro e a música, a imprensa possível. «Os lisboetas tinham mudado mais do que em 20 anos anteriores, levados pela aceleração do ritmo da história, mesmo alheia, em costumes que uma nova economia de consumo fizera alterar…». Rodrigues Miguéis intitularia a sua obra de 1946 «Onde a noite se acaba». Era um novo tempo que se abria, incerto, mas prometedor. Recomeçava tudo…
Guilherme d’Oliveira Martins