A Vida dos Livros

A VIDA DOS LIVROS

Referimos três livros apresentados nos últimos dias, que merecem atenção. Referimo-nos a «Acta est Fabula, Memórias – I – Lourenço Marques (1930-1947)» de Eugénio Lisboa (Opera Omnia, 2012); «A Cidade da Saúde» de Artur Portela (Bizâncio, 2012) e «Partes de Mim», poemas de Carlos Melo Santos (Chiado Editora, 2012). São obras diferentes, sobre as quais publicamos três notas, a partir das apresentações realizadas.

A VIDA DOS LIVROS
de 10 a 16 de Dezembro de 2012



Referimos três livros apresentados nos últimos dias, que merecem atenção. Referimo-nos a «Acta est Fabula, Memórias – I – Lourenço Marques (1930-1947)» de Eugénio Lisboa (Opera Omnia, 2012); «A Cidade da Saúde» de Artur Portela (Bizâncio, 2012) e «Partes de Mim», poemas de Carlos Melo Santos (Chiado Editora, 2012). São obras diferentes, sobre as quais publicamos três notas, a partir das apresentações realizadas.


 


UMA RARA SENSIBILIDADE
Os romanos usavam a expressão «Acta est Fabula» para significar que uma peça teatral estava terminada. Contudo, no caso de Eugénio Lisboa, felizmente, estamos perante quem, em boa hora, decide partilhar as suas riquíssimas recordações, quando ainda muito tem para nos dar como escritor, ensaísta e crítico. Estamos diante de uma obra de rara sensibilidade, dedicada à cidade de Lourenço Marques, por um dos grandes escritores de língua portuguesa. Encontramos dois protagonistas notáveis – a cidadezinha que «podia passar por uma das mais bonitas do continente africano» e um jovem com olhar de espanto, que traz até nós um autêntico paraíso, sentido e gozado pelo raro poder de evocação de um cultor magistral da língua e das ideias. Os desenhos de Dana Michaelles ilustram esse tempo, como se fossem apontamentos de histórias de quadradinhos que alimentam a nossa imaginação. «Estar vivo não é insignificante. Nenhum milagre é coisa de somenos. Vou, pois, tentar arquivar aqui, com palavras incompetentes, milagres que ultrapassam a minha capacidade de os exprimir. A Lourenço Marques da minha infância e adolescência com a praia ali ao lado e o mato muito perto, foi um desses milagres. Foi lá que aconteceu tudo quanto é importante. Foi lá que nasci, e foi lá que o mundo começou: o sol descomunal, a chuva grande, as trovoadas de estarrecer, o mar, a noite, o amor, a leitura, o futuro a haver – começaram lá. Vou falar-vos de Lourenço Marques, isto é, vou falar-vos da vida». E é de vida que realmente se trata. Ouvimo-lo com a clareza da sua palavra, com as sílabas bem marcadas, o sentido recorte de estilo e o fascínio pelo mundo literário. O certo é que essa África Oriental, como encruzilhada de culturas e influências, é um fecundo território de cosmopolitismo no Índico, bem evidenciado na literatura que vem de Eugénio Lisboa até Mia Couto… De facto, tudo começa, em boa verdade, com uma aventura literária. A «Casa das Tias» é mítica. «Olho, feita pela Dana, / a casa do Alto-Mahé: / dela, por certo, dimana / memória do que era e é». Lá estavam os volumes encadernados de Victor Hugo, de Émile Zola e de Stefan Zweig. Eugénio lembra: «Eu cocava-os, à sorrelfa, deslumbrado, salivando, sabendo que o tio Tropa os lera e eu ainda não». E eis que se lança no «Amok» de Zweig. E a tia Florinda (bonita, doce…) espreita a leitura da prosa proibida. «Estás a gostar?». «Se estás a gostar, leva-o e acaba de o ler em casa (diz com cumplicidade). Depois, diz-me se gostaste». Assim, talvez tudo tenha começado, com a complacência da adorável tia. Era um voo sem instrutor. Depois, vem uma lista suculenta de referências essenciais: a Livraria Minerva Central, os filmes da época, esse imaginário, um ror de livros e autores, o Almanaque Bertrand, a revista «Vamos Ler», Dickens, Martin du Gard, Anatole France, Machado de Assis, Eugene O’Neill, a Condessa de Ségur, Mark Twain, Balzac, Somerset Maugham… Quando ganha Stendhal, perde Dumas. E havia atrás Herculano, Júlio Dinis e Garrett (vindo o universo Régio a caminho) – e depois há o tremendo salto de «Os Melhores Contos Americanos»: Hemingway, Faulkner, Saroyan… Seguem-se Jorge Amado, mas mais fortemente Tolstoi, Thomas Mann, Gide, Proust. O liceu é um lugar de perguntas e encontros. A literatura e as ciências completam-se, naturalmente. Vários professores vêm à lembrança e um destaca-se na geografia e na história, no rigor e na cidadania – Norberto Cardigos dos Reis (que também foi meu professor), que era um modelo exemplar do mestre, ilustrando a afirmação de Epicteto: «só os ilustrados são livres». A leitura é apaixonante. É a vida que se sente a cada momento, num pulsar incessante, até esse momento dramático, que reli com emoção vezes sem conta, da partida para estudar no Técnico em Lisboa: «No dia 10 de Setembro, de manhã cedo, levantei-me, tomei banho, vesti-me, tomei o pequeno-almoço, sem apetite. Despedi-me da tia Maria, do meu irmão Ilídio, do Nero, dos empregados negros. Julgo que foi o meu tio Tropa que nos foi buscar…». Literatura e vida…




UM ROMANCE ENIGMÁTICO

Artur Portela é cultor de um fino e acutilante estilo onde a ironia e o humor se ligam à análise dos acontecimentos. «A Funda» é um exercício de muitas décadas (na melhor tradição das «Farpas»), não sendo possível compreender (e estudar) a história contemporânea, de antes e depois de 1974, sem citar muitos dos seus influentes textos emblemáticos. Romancista, cronista, escritor, jornalista (do «Jornal Novo» e da «Opção») lança agora um romance enigmático (que António Correia de Campos apresentou no CNC, realçando que a melhor ironia é o método adequado para a crítica pertinente e certeira). Diga-se, em abono da verdade, que o enigma não impede que percebamos imediatamente o que está em causa. É a adulteração da ideia de serviço público, a tentação do espontaneísmo do mercado e a simplificação das reformas políticas, confundidas com placebos ou com ilusionismo.
Anonymus faz capa do romance, propositadamente ligado ao serviço mais sensível, que tem a ver com a saúde e a vida das pessoas. Do que se trata são deliciosos e perturbadores quadros de uma estranha cidade – onde avultam personalidades: «o inquilino» fantasmático e persistente, que não desiste, o cartomante, o professor de história económica, com toque alemão e qualidade de antigo ministro das finanças, que está em contacto permanente com outros ministros das finanças com quem se encontra, o matemático rapaz, o jornalista da televisão, o arquiteto, a socióloga e o Adiantado ou o Homem que Chega de Limousine. Tudo se passa na Alameda Berlim, na Clínica Berlim, no último andar do prédio em torno do qual tudo se desenrola, clínica que cresce interminavelmente, mas para dentro. O prédio simboliza a crise que vivemos. Berta é uma figura crucial – arranca e aplica vinhetas, é o verdadeiro centro do poder desta estranha clínica e quiçá da cidade. E há o citado Adiantado, ou homem que chega de limousine, cujos pés não se vêm. É um doente secreto. Sobre o Hospital Psiquiátrico da Zona Centro-Centro fala-se da transição para a privatização, «como consequência da anunciada Nova Política de Saúde Mental, dita NPSM, que fundamentalmente pretende desinstitucionalizar os doentes e libertá-los para o regresso à sua respetivas famílias, com posterior acompanhamento ambulatório em centros de serviço público e em clínicas privadas contratualizadas, com o espera, não sem entusiasmo ideológico, sabendo-se que a ideologia, não parecendo é muito impulsiva, o marido da psiquiatra-diretora da Clínica Berlim. É este o verdadeiro Humanismo! Disse o Diretor da Nova Política de Saúde Mental, dito DNPSM…». Artur Portela brinda-nos como uma metáfora viva, com um conflito inexorável e persistente, em que as responsabilidades se diluem na sinistra e omnipresente Berta, que domina toda a máquina. No fundo, no fundo, «A Cidade da Saúde» está escondida onde menos se espera…



VARANDA DE LITERATURA
Carlos Melo Santos publica o seu terceiro livro de poesia, depois de «Tempo das Rosas Eternas» e «Lavra de Amor». O título é propositadamente ambíguo, ora pode recordar-nos Clarice Lispector, ao falar do que diferencia cada um, e em especial dos poetas, ora pode ainda dar-nos a compreensão do outro, como outra metade de nós, na expressão consagrada de Matteo Ricci. Sem especular sobre a razão de ser do título, o certo é que encontramos um conjunto de poemas, onde a literatura está bem presente, como em «Varanda de Literatura», onde se sente a intertextualidade, não só das influências, mas dos cruzamentos de referências. «Aparecia o Eça / Com o seu monóculo assestado / Colarinho engomado e bem encadernado, / O Junqueiro / De farta barba e chapéu, / O Castilho, / Coitado… cego, / Mas que importa?». A literatura é um pretexto para encontrar o quotidiano, com um quadro geral de ceticismo: «Ah poetas do meu país / Que é feito agora de vós?». E somos levados a um «poema incompleto»: «Amo por amar / Um amor sem alguém! / Tenho saudades / De quem de mim / Saudades tem». É a procura da saudade, como lembrança e desejo, na expressão de Duarte Nunes do Leão, numa relação de dois sentidos, em que o tema do outro está bem evidenciado. E que é a viuvez da saudade? «Vai a palavra / Caindo / Já no espelho da memória». E há sempre o desejo recorrente: «Esta tarde envolvi-me em Fernando Pessoa / A caminho do desejo / Numa tarde de tédio antiquíssimo / Em que de há muito tempo revi / Num desejo de novos dias». E uma varina lembra, a um tempo, Cesário e Pascoaes: «Só tu e eu entendemos / O preço da saudade, / Vale o berço que fizemos / pelo amor que guardámos». Afinal, não lembramos: «Era um piquenique de burguesas, / Simplesmente belas»… / «Tempo e luz amadurecidos»?


Guilherme d’Oliveira Martins

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