A VIDA DOS LIVROS
de 22 a 28 de Outubro de 2012
Na visita ao complexo da Pampulha, em Belo Horizonte, compreendemos que ali se deu uma viragem na arquitetura mundial, que culminaria na construção de Brasília, graças também ao impulso decisivo do entusiasta de Belo Horizonte, o célebre prefeito J.K.. Hoje recordamos o diálogo entre a arte barroca e as suas sequelas modernas e a obra-prima de Gilberto Freyre (1900-1987) «Casa Grande e Senzala» (1933).
DOIS PAÍSES MODERNOS
Uma relação moderna entre Portugal e o Brasil obriga a entender que as raízes históricas têm de ser caldeadas pelas consequências presentes da globalização. A historiografia crítica de ambos os países está hoje em condições de entender que há diferenças e complementaridades que têm de ser compreendidas e aprofundadas – num sentido crítico e emancipador, estruturadas através de um modo universalista de encarar a cultura e de uma língua comum. Impõe-se, por isso, um conhecimento mais exigente de duplo sentido, uma vez que a diversidade cultural e histórica pressupõe movimentos centrípetos e centrífugos. Do ciclo do pau-brasil passou-se ao do açúcar, que no início do século XVII correspondia a cerca de 95 por cento das exportações brasileiras, tornando o nordeste uma das zonas mais prósperas da América. No entanto, a queda dos preços internacionais da matéria-prima mudou drasticamente o curso dos acontecimentos, num sentido dramático não fora a descoberta do ouro e dos diamantes no virar dos séculos XVII e XVIII. É, no entanto, a miscigenação biológica e cultural que vai constituir a chave fundamental para a pujança criadora que gradualmente se foi afirmando no Brasil.
CASA GRANDE & SENZALA
Uma leitura moderna e atualista de «Casa Grande e Senzala» de Gilberto Freyre, completada pelos resultados das recentes investigações históricas e sociológicas, permite entender melhor o que Sérgio Buarque de Holanda designa como «Raízes do Brasil», bem como os desenvolvimentos que entretanto se foram produzindo. Lembremos a importância dos bandeirantes paulistas. Foram eles que romperam o limite do meridiano de Tordesilhas, levando o Brasil às fronteiras do presente. Os estudiosos são unânimes em referir as virtudes e os evidentes riscos dessa autocolonização, que poderia ter conduzido à fragmentação territorial. O certo, porém, é que o «melting-pot» e a construção do Estado (à imagem de Portugal) permitiram uma síntese extraordinária e uma unidade surpreendente. E diz ainda Gilberto Freyre: «Em contraste com o nomadismo aventureiro dos bandeirantes – em sua maioria mestiços de brancos e índios – os senhores das casas grandes representaram na formação brasileira a tendência mais caracteristicamente portuguesa, isto é, o pé-de-boi, no sentido da estabilidade patriarcal». Fora da tendência de exclusão que encontramos na América do Norte relativamente aos mestiços, o Brasil é um exemplo de respeito e tolerância no tocante aos filhos de cruzamentos de grupos étnicos diferentes. Não poderemos esquecer que o Padre António Vieira, ele mesmo, era neto de uma mulata, e que tal não o impediu de ser figura de primeiríssimo plano no seu tempo. A religião, a música, a literatura e arte são profundamente influenciadas por essa mestiçagem, mistura enriquecedora absolutamente inédita. Falar de uma «cultura luso-brasileira» é referir uma realidade profundamente original e diferente, demarcada das de onde partimos e que se cruzam no inesgotável território brasileiro. Voltando a Freyre: «para a formidável tarefa de colonizar uma extensão como o Brasil, teve Portugal de valer-se no século XVI do resto de homens que lhe deixara a aventura da Índia. E não seria com esse sobejo de gente, quase toda miúda, em grande parte plebeia e, além do mais, moçárabe, isto é, com a consciência de raça ainda mais fraca que nos portugueses fidalgos ou nos do norte, que se estabeleceria na América um domínio português exclusivamente branco ou rigorosamente europeu». Já lembrámos a justa crítica de Vitorino Nemésio sobre o desconhecimento nosso sobre a cultura brasileira e a míngua de estudos brasileiros aqui. É um desafio fundamental perante que nos encontramos. Não basta a invocação comemorativa de laços ou recordações. E não se pense que a economia avança sem o intercâmbio e o diálogo da cultura. A situação mundial e europeia obriga a um estreitamento de relações de conhecimento e de criatividade, de saber e iniciativa. Não se trata de pensar em alternativas globais à construção europeia, mas da construção de um novo relacionamento atlântico com interesses e valores comuns e diferentes.
O SONHO DE J. K.
No final do primeiro dia da visita do CNC, no conjunto arquitetónico da Pampulha em Belo Horizonte, recordámos Juscelino Kubitschek e a visão futurista do jovem prefeito (1942-44), anunciando ali o que seria o fantástico sonho de Brasília, com Óscar Niemeyer. O Cassino funcionou fugazmente como salão, pela proibição pelo Presidente Dutra dos jogos de fortuna e azar (em 1946), passando a ser um centro de arte na década seguinte. A Casa de Baile acompanharia o destino do Cassino. O Iate Ténis Clube é monumento nacional e os jardins de Roberto Burle Marx são uma referência da arquitetura paisagística. A Igreja de S. Francisco de Assis também é monumento e é um exemplo de renovação da arte religiosa, com os painéis e azulejos de Cândido Portinari, de Paulo Werneck e as esculturas de Alfredo Ceschiatti. Homenageámos, assim, Nuno Teotónio Pereira e os seus companheiros do nosso MRAR, como o tínhamos feito relativamente a Gonçalo Ribeiro Telles, quando falámos de Burle Marx, lembrando igualmente Ruben A., diretor dos serviços de imprensa da Embaixada do Brasil em Lisboa, que tanto contribuiu para o conhecimento da obra emblemática de Belo Horizonte. A utilização das curvas por Niemeyer prolonga o barroco e afirma a identidade de Minas Gerais e desse espírito artístico de contradição, de representação, de metáfora, de sonho, de imperfeição, de humanidade e universalismo. E, sobre o barroco brasileiro, temos de lembrar Mário de Andrade (1893-1945), o primeiro a reconhecer a continuidade entre a obra dos santeiros e dos escultores dos século XVIII e a epopeia modernista. António Francisco Lisboa foi o génio que interpretou e antecipou. O barroco do Aleijadinho não se limita a ser estilo da época (até porque é único) – é uma atitude original, que põe a arte de Minas Gerais num ponto singular na história, como reconheceu Germain Bazin. E se dúvidas houvesse, aí está a literatura pujante desse barroco brasileiro especial, projetado para além de setecentos. Desde o Padre António Vieira até Euclides da Cunha (com «Os Sertões – Campanha de Canudos», 1902, sobre o movimento de António Conselheiro) – onde as metáforas e as contradições se encontram, com a plasticidade da língua. E a verdade é que Mário de Andrade não pôde prever que João Guimarães Rosa seguiria esse filão, como, aliás, João Cabral de Melo Neto (admirador confesso de Quevedo e Gôngora) e Carlos Drummond de Andrade… Por um momento, nesse sonho barroco de letras e artes, quase esquecemos que Belo Horizonte nasceu em 1897, planeada ortogonalmente por Aarão Reis, para suceder a Mariana e Vila Rica de Ouro Preto, onde o bandeirante João Leite da Silva Ortiz, guarda-mor das minas de Goiás, fundou, a partir de uma concessão em sesmaria (1711), o Curral d’El-Rei.
Guilherme d’Oliveira Martins