A VIDA DOS LIVROS
de 24 a 30 de Setembro de 2012
«No meio do caminho tinha uma pedra / tinha uma pedra no meio do caminho / tinha uma pedra / no meio do caminho tinha uma pedra. // Nunca me esquecerei desse acontecimento / na vida de minhas retinas tão fatigadas. / Nunca me esquecerei que no meio do caminho / tinha uma pedra / tinha uma pedra no meio do caminho / no meio do caminho tinha uma pedra». Carlos Drummond de Andrade (1902-1987) deixou-nos há vinte e cinco anos, e teria hoje se vivesse 110 anos. Em Itabira celebrámo-lo, lendo-o, lembrando-o, poeta maior da nossa língua comum!
QUANDO SE PREPARAM AS MALAS…
Quando se preparam as malas para uma viagem fica sempre a sensação de que algo falta. E quando se trata de um périplo literário e artístico, há o constrangimento inexorável do excesso de peso. Muito vai na memória, outro tanto num pequeno carregamento de cadernos de apontamentos e depois há o essencial. Foi para que esse essencial fosse mesmo essencial que se inventaram os roteiros. Encontramos sempre nas antigas viagens a referência aos Baedekers e a todos os sucedâneos que a imaginação e a informação foram inventando. Hoje há os recursos informáticos, a informação instantânea, mas diz-me a experiência de algumas voltas ao mundo, que só uma preparação cuidada e a reunião da informação certa permitem olhar como deve ser o que procuramos. Já aqui disse há algumas semanas que Minas Gerais é o nosso destino, em busca do especialíssimo Barroco luso-brasileiro – desse de que, melhor que ninguém, disse Germain Bazin: «a religião foi o grande princípio de unidade no Brasil. Ela impôs às diversas raças aqui misturadas, trazendo cada uma um universo psíquico diferente, um mundo de representações mentais básico, que facilmente se sobrepôs ao mundo pagão, no caso dos índios e dos negros, através da hagiografia, tão adequada para abrir caminho ao cristianismo para os oriundos do politeísmo». E não diz ainda Bazin, que «para o homem desse tempo tudo era espetáculo»? Compreende-se que esse barroco, para muitos algo ilusoriamente pobre, é uma manifestação exuberante do encontro de muitas pedras inesperadas no meio dos caminhos, como nos avisou Drummond («tinha uma pedra no meio do caminho / no meio do caminho tinha uma pedra»).
O BARROCO FASCINANTE
Esse barroco fascinante leva-nos a um Brasil fantástico, paraíso e utopia, que Vitorino Nemésio encontrou como familiar e diferente, paradoxalmente: «os sinos de Ouro Preto soam-me como timbre de menino do outro lado da vida (…) Estou em Minas Gerais e é como se estivesse num Portugal caldeado de vilas do Norte e do Sul. A ponte, à Casa dos Contos, parece estender-se sobre o Tâmega e colocar-nos na vila de Amarante. A rua do conde de Bobadela, que trepa ao largo do Paço (Tiradentes), parece de Montemor-o-Novo, quando se vai para Évora. Não fora este ar de Calvário abolido e sentia-me no Minho e no Alentejo». Mas Nemésio, andarilho da cultura, ilhéu com olhos despertos para diferenças e proximidades, sabia como era outra coisa aquilo que lhe parecia tão familiar. Por isso, tem outra visão do cemitério de Santa Engrácia, também de Ouro Preto: «Sumido o oiro das catas, / Brilham janelas perdidas, / Torna-se a alma um segredo; / O Curral d’El-Rei cerrou-se, / Os matos ardem de medo. / (…) Ó céu de Belo Horizonte / Que futuro me daria / Teu movimento secreto?». E não era açoriana a adorável avó de Cecília Meireles, D. Jacinta Garcia Benevides, boquinha de doce, que lhe deixou a semente indelével da poesia, onde o sentimento da identidade brasileira está patente no bem mineiro «Romanceiro da Inconfidência»? Mas ir ao encontro desse barroco tão especial é ir na senda do encontro tenso que criou o Brasil de sempre. Aí está a «Prosopopeia» de Bento Teixeira (1601), a poesia de Gregório Matos, a genialidade de António Francisco Lisboa, o Aleijadinho, e ainda a importância do Mestre Manuel da Costa Ataíde, de Mariana, com influência decisiva na personalidade artística do Brasil colonial. E, sobressaindo na literatura, representando a maturidade da prosa portuguesa, o Padre António Vieira, clama pelo dom do verbo com a força luxuriante das palavras: «Os caminhos são os corações inquietos e perturbados com a passagem e tropel das coisas do Mundo, umas que vão, outras que vêm, outras que atravessam, e todas passam; e nestes é pisada a palavra de Deus, porque a desatendem ou a desprezam». O barroco entrelaça a sociedade e a economia, a escultura, a pintura, a arquitetura, a poesia, a literatura, a oratória e até a música e o teatro, e como salientou Roger Bastide nas memoráveis lições que ministrou na Universidade de S. Paulo, a partir de final dos anos trinta, que tiveram influência decisiva na geração de António Cândido, devemos falar num Brasil de contrastes, de uma identidade própria que se vai afirmando e que leva ao «Barroco brasileiro». E falando de Bastide, nestas embaixadas culturais do Centro Nacional de Cultura, reencontramo-lo depois de nos ter acompanhado na nossa viagem desde o vudu do Benim até ao Candomblé da Bahia. E neste ano do centenário de Jorge Amado não podemos esquecer essa busca da idiossincrasia social brasileira, tão historicamente enraizada…
UMA SÍNTESE FECUNDA
É a complexa síntese do Brasil moderno que se sente a cada passo, com profundas raízes históricas. Terra de jesuítas e de bandeirantes, de gente de cá e de fora, de povos e culturas em ebulição. E a personalidade própria afirma-se. Afonso Arinos lembra o seu caso: «Era, autenticamente, uma família senhoril; de senhores mineiros, bem entendido, modestos, sem luxos nem riquezas, mas senhores, isto é, gente simples mas altiva, incapaz de sofrer qualquer humilhação para subir na vida. O que os diferenciava, talvez, de outros grupos familiares do mesmo género, existentes no Estado, era a ininterrupta tradição intelectual que fazia da literatura na nossa casa, uma coisa comum, uma conversa de todo o dia. A literatura nos acompanhava desde a colónia». Uma personalidade própria, um sentido cultural intenso, uma perspetiva crítica feita de uma ciosa autonomia de espírito e de ação, que bem se sente no «Romanceiro» de Cecília. E há ainda o fascínio de João Guimarães Rosa e de «Grande Sertão – Veredas». Aí estamos perante a linguagem rural dos sertanejos, um barroco vivo, que o autor maneja com mestria perturbadora. Contudo, como diz António Cândido: “tudo se transformou em significado universal graças à invenção, que subtrai o livro da matriz regional”. Ali estão “os grandes lugares-comuns, sem os quais a arte não sobrevive: dor, júbilo, ódio, amor, morte, para cuja órbita nos arrasta a cada instante, mostrando que o pitoresco é acessório e, na verdade, o Sertão é o mundo”. Riobaldo conta, de modo caótico, a sua experiência pessoal – e no fim, quando sobrevive, revelado o enigma de Diadorim, acaba a gozar a vida e a lembrar o pacto que um dia celebrou com o diabo, mas a concluir que o que verdadeiramente “existe é o homem humano”… Porque afinal “sertão é dentro da gente”. Nesta antemanhã brasileira, importa dizer que há uma cultura moderna e futurante que se desenha neste diálogo atlântico. Esse barroco irrequieto é uma espécie de matriz, que revive no humanismo universalista que Cortesão viu melhor que todos. E a chave chama-se diálogo e presença, a força da Europa fora da Europa – «Por muito tempo achei que a ausência é falta / E lastimava, ignorante, a falta. / Hoje não a lastimo. / Não há falta na ausência. / A ausência é um estar em mim». Carlos Drummond de Andrade define o diálogo.
Guilherme d’Oliveira Martins