Reflexões

De 6 a 19 de Setembro de 2004

Basta percorrer o mundo que os portugueses criaram para perceber que a heterogeneidade coexiste com os denominadores comuns. Quando a abertura democrática de 1974 ocorreu, houve quem se limitasse a ver um regresso ao continente europeu, ao cais de Belém de onde partira Vasco da Gama e onde estivera o misterioso velho do Restelo…

De 6 a 19 de Setembro de 2004

Basta percorrer o mundo que os portugueses criaram para perceber que a heterogeneidade coexiste com os denominadores comuns. Quando a abertura democrática de 1974 ocorreu, houve quem se limitasse a ver um regresso ao continente europeu, ao cais de Belém de onde partira Vasco da Gama e onde estivera o misterioso velho do Restelo. No entanto, a multissecular aventura de um povo que se repartiu pelo mundo, de Fernão Mendes Pinto a Wenceslau de Morais, não se interrompeu, apenas se transformou. A democracia permitiu o reencontro com a longa duração da História. E ficou mais uma vez demonstrado que sempre que nos isolámos perdemos. As “saudades do futuro” do Padre Vieira e o espírito da “Peregrinação” mais não significaram do que um sentimento e uma vontade de fazer da aventura do diálogo entre as culturas e da abertura ao mundo uma questão de sobrevivência e um motivo de progresso e de emancipação. Ao longo da História, a necessidade de novos recursos e de novas soluções exigiu sempre que o espírito se ligasse à acção. O dilema de António Sérgio, bebido na geração de 1870, entre o “transporte” e a “fixação”, mais não significa do que a necessidade de encontrar o equilíbrio entre a viagem e a capacidade de regressar bem. O retorno não poderia fazer esquecer a “peregrinação”, o sentido nómada (de Ruy Cinatti) não poderia destruir a identidade sedentária. Eis porque a “fixação” não poderia fazer-se sem dar a devida importância ao “transporte” – devendo este fazer-se a pensar nos que ficavam no cais e na terra dos antepassados. Daí que os Infantes D. Henrique e D. Pedro sejam complementares nos seus projectos e ideias e nunca contraditórios. E quando, consolidadas as instituições democráticas, em 1985, se consumou o “regresso”, em especial com a adesão ao projecto europeu – houve um sentimento ambíguo, ora dos que julgavam ter terminado a viagem e o seu sentido de futuro, ora dos que entendiam que a Europa seria o novo Eldorado (ou o sucedâneo das antigas peregrinações e Índias), ora ainda dos que sabiam que o novo projecto só teria sentido se inserido na compreensão da História e na assumpção de uma herança complexa, sempre feita de uma tensão entre duas Europas – a do continente ou a de dentro e o projecto espiritual da Europa, projectado para fora da Europa. Eduardo Lourenço viu-o, por certo, melhor do que ninguém. E, ao contrário do que alguns pensam ser defensivo, em torno do que nos é próprio, da nossa identidade, o que o ensaísta do “Labirinto da Saudade” faz é abrir horizontes, procurando ver na projecção política europeia a compreensão de um sentido universalista do “transporte” e do “regresso”. Por isso, disse Lourenço que o nosso “regresso” foi justo – “porque este pequeno povo que se aventurou longe da Europa, foi a este título o mais europeu dos povos”. A Europa não é um fim ou um destino, mas uma encruzilhada, enquanto comunidade plural de destinos e valores.

Guilherme d´Oliveira Martins

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