Nem todos os acontecimentos históricos têm efeitos imediatos significativos, mas podem produzir resultados profundos no longo prazo. A Revolução portuguesa de 1820 é um desses exemplos. Não estamos perante um fenómeno instantâneo, mas diante de um processo gradual em que a sociedade se foi emancipando. Lembremos o que antecedeu no movimento do Porto de 24 de agosto: a ausência da Corte no Rio de Janeiro e a menorização política, económica e social do continente; o domínio de facto dos militares ingleses e o erro tremendo (pelo perigoso excesso de zelo de Beresford) da condenação à morte dos “mártires da Pátria” e da humilhação de Gomes Freire; os ecos da revolução de Cádis de 1812, do levantamento pernambucano de 1817 e da inaceitável recusa de Fernando VII do juramento da Constituição. Como vimos, as guerras peninsulares dividiram profundamente a sociedade portuguesa: havia um sentimento geral de resistência ao invasor napoleónico, Muitos dividiam-se entre a guerrilha contra o invasor, a participação no que restava do exército português ao lado das tropas britânicas ou até as simpatias pelo partido afrancesado, mas o certo é que há uma convergência ibérica que liga a Constituição de Cádis à Revolução do Porto de 1820.
A articulação dos dois sentimentos ibéricos, liberais e independentistas foi tão evidente que o primeiro impulso dos revolucionários portugueses correspondeu à defesa da adoção dos princípios da espanhola Constituição de Cádis em Portugal. As ideias de liberdade completavam a vontade mútua de independência. Foi o texto constitucional de Cádis o primeiro no sentido moderno da Península, apenas antecedido no mundo ocidental pelas Constituições da Córsega de 1755, dos Estados Unidos da América de 1787 e da França de 1791. No entanto, “La Pepa” apenas teve uma primeira vigência fugaz até 1814 e duas restaurações em 1820 e 1823. Mas aí estavam em causa inequivocamente o reconhecimento da soberania popular, a legitimidade dinástica, a separação de poderes, a independência dos juízes e a inviolabilidade dos representantes do povo no exercício de suas funções. Pode e deve dizer-se que nunca mais este reconhecimento deixará de marcar a vida política peninsular. Apesar das resistências mais conservadoras, a verdade é que o Antigo Regime, a legitimidade do absolutismo real e as Cortes Gerais da Nação deixaram de ter razão consensual e não puderam prevalecer sobre as ideias novas da soberania popular. D. João VI e seu filho D. Pedro compreenderam cedo essa nova tendência e a necessidade de salvar a unidade do Brasil. E a política britânica seria levada com o tempo, com a ajuda francesa dos Orleães, a abandonar a lógica dos velhos poderes e a seguir o que mais tarde viria a ser assumido pela orientação reformista liberal do whig Charles Grey (1764-1845), de boa memória, até para o fim do esclavagismo, decisiva na viragem de ventos que permitiria a vitória liberal na guerra civil, consagrada em Évora Monte (1834).
Deve, por isso, ser reconhecida mais do que a importância estrita do Sinédrio como movimento, a inteligência política de Manuel Fernandes Tomás, José Ferreira Borges e José Silva Carvalho. O primeiro singularizou-se pela competência, probidade e sentido patriótico, quer no trato exemplar com o comando britânico quando este era fundamental para a preservação da independência nacional, quer na tomada de consciência sobre a necessidade de não eternizar a dependência inglesa, lançando as bases de uma legitimidade constitucional similar à da Albion depois da “gloriosa revolução” de 1688-89. Garrett afirmou: “Portugal tornou a ver as suas cortes, e a Nação teve quem a representasse: toda a Europa admirou com respeito um congresso ilustrado, e no meio dele o campeão da liberdade, o patriarca da regeneração portuguesa”. Com inteira justiça, o óculo da Sala das Sessões plenárias da Assembleia da República representa Manuel Fernandes Tomás no uso da palavra. Importa, por isso, conhecer o percurso do exemplar magistrado, do estudioso incansável, do conhecedor profundo do género humano, do combatente sem descanso das liberdades e do bem comum. Urge, de facto, lembrar nos documentos que chegaram até nós sobre o magistério cívico do “primeiro dos regeneradores” a análise serena, moderada e objetiva sobre a necessidade de edificar um regime constitucional digno de uma nação civilizada (Cf. Manuel Fernandes Tomás, Escritos Políticos e Discursos Parlamentares – 1820-1822, Introdução e edição de José Luís Cardoso, ICS, 2020).
Sabemos, porém, das dificuldades existentes, numa nação atravessada por contradições que corresponderam à situação política e económica, num contexto incerto saído do Congresso de Viena e da União Sagrada, que favoreceu inicialmente a causa absolutista, e não as ideias liberais. Foram as Constituições de Cádis de 1812 e portuguesa de 1822 de inspiração republicana? Sim, no entanto, D. João VI e depois seu filho D. Pedro procuraram superar esses constrangimentos e encontrar a solução constitucional que a Carta Constitucional de 1826, após a trágica morte do rei, pretendeu preencher, apesar das limitações, que apenas viriam a ser superadas na segunda Regeneração de 1851. Para usar a expressão de Almeida Garrett, cidadão maduro: a Constituição deveria ser a pedra de toque de um regime justo, promover um governo representativo, e segurar a majestade do Povo, a liberdade da Nação, os direitos do Trono, a santidade da religião, e o império das leis. E a Carta Constitucional completada pelo Ato Adicional de 1852 (como Herculano defendeu) tornar-se-ia a mais duradoura das nossas Leis Fundamentais, baseada num consenso cívico e político decisivo.
A vida do constitucionalismo português tem-se feito e continuará a fazer-se, pois, gradualmente. Por isso, Garrett, no início deslumbrado por Rousseau, cartista crítico, aderiria a Montesquieu e a Chateaubriand. E Alexandre Herculano, cartista de alma e coração tornar-se-ia paladino da Constituição de 1838, cuja matriz estava na Lei Fundamental de 1822, limada de algumas angulosidades. E não se esqueça como o então moderadíssimo Herculano foi obrigado em 1831 a partir para o exílio, perseguido pelo mais cego dos radicalismos absolutistas. Se a Constituição da República Portuguesa de 1976 resultou de um compromisso complexo mas essencial, que perdura, a verdade é que ele se inseriu na tradição começada em 24 de agosto de 1820, no caminho fecundo do Estado de Direito, da soberania popular, do primado da lei, da legitimidade democrática e dos direitos fundamentais… A Revolução de 1820 tem, pois, uma importância maior do que à primeira vista possa parecer. Trata-se do acontecimento que põe termo, de facto, em Portugal ao absolutismo monárquico. A nova Constituição, saída da Revolução em 1822, previu, assim, a soberania popular, a legitimidade dinástica, a separação de poderes, a independência dos juízes e a inviolabilidade dos deputados da nação no exercício das suas funções. No entanto, a fragilidade do texto deveu-se à limitação dos poderes reais, pela ausência do monarca no Brasil. É certo que a vigência da nossa primeira Constituição foi muito curta, mas a verdade é que a partir da Vilafrancada e depois do regresso do Antigo Regime e das Cortes Gerais da Nação com D. Miguel desenvolveu-se uma guerra civil de legitimidades, na qual o absolutismo se encontrou logo fragilizado e ferido de morte.
Apesar dos contratempos e das vicissitudes, o certo é que o rei D. João VI, com um fim trágico, vai ter um papel fundamental no futuro constitucional português e na salvaguarda da unidade do Brasil. D. Pedro outorgará a Carta Constitucional prometida em Vila Franca e a história política da Regência de D. Pedro na ilha Terceira, o desembarque dos heróis do Mindelo (entre o quais Garrett e Herculano), o Cerco do Porto e a vitória de Évora Monte em 1834 confirmarão que os acontecimentos do Porto de 24 de agosto de 1820 marcaram decisivamente a história portuguesa a partir de então. Não esqueço a veneração que encontrei no Brasil por exemplo no saudoso Amigo Hélio Jaguaribe pelos heróis da liberdade dos dois lados do Atlântico. De facto, as circunstâncias internacionais e a importância da Santa Aliança, que deram alento à causa miguelista, alteraram-se totalmente no início da década de 1830, quer pela chegada ao poder do governo liberal de Charles Grey em Inglaterra, quer pela monarquia de julho de Luís Filipe de Orleães. E a causa da liberdade venceu. Relembre-se a coerência de Manuel Fernandes Tomás, o “primeiro dos regeneradores”, com um papel fundamental na ligação ao Estado-Maior britânico, sendo, pois, um fator de equilíbrio e moderação, grandemente responsável pela vitória luso-britânica sobre as tropas de Napoleão na guerra de libertação nacional. Por outro lado, no quadro legislativo, insista-se, a Constituição de 1822 viria a ser a base da Constituição de 1838, após a Revolução de Setembro de 1836, sob a referência cívica e pedagógica de Passos Manuel, que levaria, depois do interregno cabralista, à sábia síntese plenamente concretizada na acalmação regeneradora do Ato Adicional de 1852, que permitiria a maior vigência em tempo de um texto constitucional na história portuguesa.
Almeida Garrett, imbuído dos ideais clássicos mais intensos e nobres, simboliza o melhor deste espírito, o que o leva a afirmar, em novembro de 1820, aquando da Martinhada, ao Corpo Académico: “Vivamos livres… ou morramos homens”. O jovem poeta exprime com entusiasmo a força mais pura dos ideais em que a sua geração acredita. Importaria defender uma solução política que favorecesse a liberdade e a justiça. Por isso, o jovem defende mais audácia dos constituintes de 1821 no domínio da Instrução Pública – “tão livre é o povo ilustrado quanto escravo o povo ignorante”. E enfatiza: “o povo cuja maioridade seja iluminada, esse povo será livre, porque a pequena porção de ignorantes não basta para servir os que o não são”. De facto, exigia-se pedagogia cívica. Essa era a orientação persistente do futuro autor de “Da Educação”. Se havia nele um impulso genuinamente radical contra a tirania e a idolatria, havia igualmente uma preocupação, que se manifestará pela vida adiante, no sentido do pragmatismo e do primado da lei, de acordo com os apelos que Catão e Mânlio fazem a Bruto contra o seu radicalismo. A Lei Fundamental deveria ser, pois, audaz, mas compromissória, reconhecendo a soberania do povo e do seu poder constituinte, assegurando o sufrágio geral e a representatividade popular das Cortes. A Constituição deveria ser, assim, a pedra de toque de um regime justo, promovendo um governo representativo, segurando a majestade do Povo, a liberdade da Nação, os direitos do Trono, a santidade da religião, e o império das leis. Eis a importância da Revolução de 1820, como momento fundador do nosso constitucionalismo, hoje vivo na Constituição da República Portuguesa de 1976. Quando lemos os “Escritos Políticos e Discursos Parlamentares (1820-1822)” publicados por José Luís Cardoso (Imprensa de Ciências Sociais, 2020) percebemos como aqui se encontra a matriz perene de uma cultura de cidadania, de liberdade e de salvaguarda dos direitos fundamentais.
Agostinho de Morais