Cada Terra com seu Uso

VIII. De Vasco da Gama a Afonso de Albuquerque: um império universal

Sobre Vasco da Gama, importa lembrar que depois da morte do Infante D. Henrique as navegações «eram sobretudo impulsionadas pela procura do Preste João e do ouro da Guiné, e que, durante o reinado de D. João II, estes motivos foram reforçados pela procura de especiarias asiáticas – compreendendo-se a resposta do enviado de Gama sobre o que fariam ali aqueles navegadores. «Viemos procurar cristãos e especiarias». O certo, porém, é que os conselheiros de D. Manuel, ouvidos em Montemor-o-Novo, mais se inclinaram para que a Índia não se deveria descobrir – como no-lo diz João de Barros. Quando regressou ao reino, em agosto de 1499, Vasco da Gama perdera dois navios e cerca de metade da tripulação, no entanto a abertura de novos contactos permitiria abrir horizontes, que a armada de Pedro Álvares Cabral viria a consolidar – com a concretização do Achamento do Brasil, documentado na carta de Pero Vaz de Caminha, bem como com o delineamento de uma nova estratégia de acordos locais, designadamente em Cochim e Cananor. Segundo Boxer: «a mira dos lucros a ganhar com o projetado monopólio português das especiarias e a confianças na possibilidade de encontrar aliados cristãos nas terras que confinavam com o Índico permitiram a D. Manuel vencer hesitações de alguns dos seus conselheiros e lançar este pequeno reino na espetacular carreira de empreendimentos militantes na Ásia das Monções».

«O Império Marítimo Português – 1415-1825» de Charles Boxer (1904-2000) é uma obra clássica, publicada pelo célebre estudioso britânico em 1969 e que nos fornece uma indispensável síntese panorâmica da expansão portuguesa no mundo através da consideração das suas origens, vicissitudes, limitações e desenvolvimentos. Charles R. Boxer tornou-se em 1947, após uma vida militar no Oriente, titular da cátedra Camões no King’s College em Londres, onde exerceu funções até 1967. Profundo conhecedor das línguas e culturas asiáticas e sendo estudioso do contacto destas com as culturas europeias, designadamente a portuguesa e a holandesa, Boxer foi uma autoridade respeitadíssima relativamente ao conhecimento da primeira globalização, tendo ainda sido Professor da História do Extremo Oriente na Universidade de Londres no início dos anos cinquenta. A obra referida culmina a ação pedagógica na capital britânica – tendo-se tornado um manual indispensável para um conhecimento sério das viagens dos portugueses pelo mundo e das suas consequências para a génese da economia e da sociedade modernas. Depois de 1967, aceitou ainda a cátedra de História da Expansão Europeia na Universidade de Indiana a que se seguiu semelhante função na Universidade de Yale – tendo tido até à sua morte uma relevante influência e orientação no estudo complexo dos acontecimentos que determinaram a criação do Império Marítimo Português, desde a conquista Ceuta até ao ocaso da presença asiática.

Com a descoberta do caminho marítimo para a Índia, Vasco da Gama abriu novos horizontes nas relações entre continentes e no conhecimento do planeta Terra. «Durante a exploração (diz Roger Crowley em «Os Conquistadores», Presença, 2016), os portugueses iniciaram infindáveis interações mundiais, de teor positivo e negativo. Trouxeram armas de fogo e pão para o Japão, astrolábios e feijão-verde para a China, escravos africanos para as Américas, chá para Inglaterra, pimenta para o Novo Mundo, seda chinesa e medicamentos indianos para todo o continente europeu, um elefante para o Papa. Pela primeira vez, os povos de lados opostos do planeta puderam ver-se, tornando-se alvo de descrições e de espanto. Pintores japoneses representaram estes visitantes estranhos em imagens, usando calças de balão enormes e chapéus coloridos»… No entanto, durante trinta anos, no início do século XV, o imperador chinês Yongle, da recém-estabelecida dinastia Ming, enviou armadas pelos mares ocidentais, apenas para afirmar o poder do Império do Meio. As expedições teriam sido seis em vida de Yongle e sete entre 1431 e 1433. Não houve, porém, tentativas de ocupação militar nem empreendimentos económicos, apenas uma afirmação de poder e influência. Em 1433, na sétima expedição, Zheng He, o mítico almirante muçulmano, morreu, talvez em Calecute, na costa da Índia e depois da sua morte as «jangadas estelares» não voltaram a navegar. A orientação política no Império da China mudara e, em lugar da abertura ao mundo, prevaleceu o isolamento e foi reforçada a Grande Muralha. «As viagens marítimas foram banidas e os registos destas destruídos». Neste primeiro caso, dá o autor nota de que aquilo que os portugueses fizeram ao abrir caminho para o conhecimento do planeta, poderia ter acontecido a partir da China. A verdade é que os navios de Vasco da Gama caberiam num só dos juncos magnificentes de Zheng He.

No caso das navegações portuguesas, nada dependeu de um mero acaso ou de uma qualquer improvisação. Houve informação, conhecimento, ponderação, planeamento, determinação e convergência de esforços – e houve ainda dificuldades a superar, carência de recursos, efeitos de uma profunda crise e ecos da tremenda peste negra… «O destino e a sorte de Portugal foram não ter acesso ao Mediterrâneo, a arena movimentada do comércio e troca de ideias. Na orla da Europa e periféricos ao Renascimento, os portugueses podiam apenas olhar invejosamente para a riqueza de cidades como Veneza e Génova, que tinham assumido posições dominantes no mercado dos bens de luxo vindos do Oriente: especiarias, seda e pérolas, comerciando com as cidades islâmicas de Alexandria e Damasco e vendendo os produtos a preços monopolistas. Portugal, porém, estava virado para o mar». E somos conduzidos a partir dessa singular circunstância – uma costa marítima aberta e um modo novo de pensar, que Jaime Cortesão liga aos fatores democráticos e ao franciscanismo… Assim temos a identificação da rota marítima para as Índias; o conflito que envolve os monopólios até à conquista, invocando o «Leão dos Mares» – é Afonso de Albuquerque, cujo modelo era Alexandre o Grande da Macedónia, como figura contraditória, portadora de uma vontade férrea e de uma visão estratégica fundamental. Aqui notam-se os paradoxos políticos do reino. D. Manuel terá tido consciência do que estava em causa. A alternativa pôs-se entre a lógica nacional e de Estado e a descentralização mercantil – prevalecendo no fim esta última. Goa, Ormuz e Malaca são centros cruciais, que Afonso de Albuquerque define, conquista e consolida… Os portugueses terão influência decisiva no Oceano Índico e na Ásia durante pelo menos cento e cinquenta anos graças a esses três pontos estratégicos. Lembremo-nos, porém, que o Conselho Privado do Rei não advogou a viagem à India, mas D. Manuel definiu, apesar de tudo, esse como um objetivo estratégico do seu reinado – afirmando: “Vamos à India!”. Contudo, há um sonho providencial, que se vai desvanecer perante a distância e a ilusão dos ganhos fáceis dos «fumos da Índia». Uma história de claros e escuros a merecer atenção prospetiva! Leiam-se os cronistas João de Barros (1496-1570) e Diogo do Couto (1542-1616) e descubram-se os aspetos positivos e negativos de um Império que não sobrevive ao cerco holandês, suscitado pela união pessoal e pela monarquia dual de Filipe II (I, de Portugal) e seus descendentes.

“Para o tráfego da Índia, Portugal necessitava da segurança das costas atlânticas e do apoio naval espanhol” e, para as Américas, a Espanha precisa das linhas portuguesas. E D. Manuel torna-se legítimo pretendente à sucessão dos Reis Católicos – mas a morte de Miguel da Paz (simbolicamente sepultado na Catedral de Granada junto a seus avós) vai de novo deitar a perder o projeto (de D. João II) de tornar concreto o “equilíbrio” – contra as ameaças corsárias do norte da Europa…” Miguel da Paz (1498-1500) é filho de Manuel e de sua mulher D. Isabel e nele se punham todas as esperanças de poder unificar os Reinos Peninsulares sob os auspícios do Reino marítimo de Portugal.

Carlos I de Espanha (V de Habsburgo) e a Imperatriz Isabel de Portugal (filha de D. Manuel e mãe do futuro Filipe I de Portugal) procurarão restaurar a “Respublica Christiana”, “cuja principal vantagem seria substituir as guerras por debates e decisões garantidas por um poder real forte e adequadamente centralizado”. No entanto, a França, a Espanha e a Áustria tornam-se os Estados europeus dominantes. Portugal (como a Inglaterra) procura espaço atlântico através do império marítimo, com dificuldades e sem procura interna e uma base económica continental sólida. É o tempo do cerco, que cada vez mais se aperta, sem espaço de manobra. Para o Prof. Jorge Borges de Macedo, apenas pode compreender-se o projeto do rei D. Sebastião, a partir da tentativa de obter o equilíbrio perdido perante a hegemonia europeia dos Áustrias. O projeto de Alcácer-Quibir estaria assim na lógica sequência da vitória de Lepanto (1571) sobre o expansionismo turco. Havia que impedir a chegada do império otomano a Marrocos, e esse objetivo pôde ser alcançado apesar dos custos terríveis para o império português e para as suas pretensões… Seria, no entanto, preciso esperar pela guerra dos Trinta Anos (1618-1648), pela reação vitoriosa de 1640 (com apoio do Cardeal Richelieu) perante a tentativa centralizadora do Conde Duque de Olivares, pela nova orientação da Paz de Vestefália (1648), instituidora de um novo quadro europeu, para Portugal recuperar o equilíbrio perdido, mas isso são outros contos ainda por contar…

Agostinho de Morais

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