Compreende-se a importância do Norte Atlântico por ser “a região por excelência do regime senhorial” e de as áreas mais montanhosas do Norte Interior e do Sul Mediterrânico coincidirem com a “implantação maciça das comunidades organizadas em concelhos”. Afinal, a receita para o sucesso político de Henrique de Borgonha e dos reis portucalenses advém da arguta compreensão desta diferença e desta complementaridade. Há, de facto, uma “dialética constante entre os vetores da divergência e os movimentos da integração”. E a integração acaba por prevalecer, por força das migrações, do progresso económico ou da organização social e do poder político. Eis como José Mattoso, com base numa investigação essencial que articula os diversos elementos já conhecidos, faz a ponte entre as duas influências portuguesas – superando, assim, o velho entendimento dos Nobiliários, sobretudo preocupados com o nexo gótico e com o predomínio exclusivo dos reinos cristãos. O Estado, que precedeu a Nação, progrediu para além desse entendimento – compreendendo os mais influentes monarcas portugueses a importância das diferenças sociais e étnicas, do moçarabismo, da fragmentação dos reinos taifas e do descontentamento crescente que ia germinando no sul.
O papel da guerra externa foi fundamental na consolidação da nacionalidade. E o facto de o reino ser de fronteira pesou fortemente na relação exigente entre o estímulo e a resposta. A expansão para sul permitiu resolver a conflitualidade entre os membros da nobreza, dando-lhes novos espaços de influência. Os excedentes demográficos de Entre-Douro-e-Minho puderam ser absorvidos e as importantes cidades conquistadas (nas quais avultam Santarém e Lisboa) tornaram-se centros económicos muito relevantes e novos mercados para a sociedade agrícola e comercial. O facto de os municípios moçárabes se terem deixado encabeçar por D. Afonso Henriques tornou-se garantia de estabilidade e de uma boa defesa fronteiriça – baseadas na cedência ao rei de prerrogativas na justiça e no fisco, em troca de não terem de se submeter aos poderes senhoriais e da Igreja. Em bom rigor, porém, o Estado nasceu apenas com Afonso II, e com o seu chanceler Julião, sendo ameaçado pela expansão senhorial do reinado de Sancho II, a que Afonso III pôs cobro. No fundo, o Estado – identificado com o poder real – engendrou lentamente a nação, unindo populações, contrariando a fragmentação, mobilizando forças e dando um sentido à ação coletiva. E assim se entende que na crise de 1383-85 tenhamos uma guerra nacional e não tanto um conflito entre senhores. É a consciência nacional que surge, encontrando as suas fronteiras e os seus símbolos – que deixam de significar a identificação de um poder real, para representar a identidade dos portugueses… O método de José Mattoso em Identificação de um País recusa as explicações tradicionais ou mitológicas. Centra-se nos factos, na concatenação dos acontecimentos e das vontades, no processo longo de maturação da consciência nacional. As simplificações são postas de parte. A “portugalidade” é vista como fenómeno complexo que não pode resumir-se a um dilema entre os que “tendem a estreitar os laços com a Europa” e os que projetam “Portugal para fora dela”. Os traços da nossa identidade baseiam-se numa síntese que exige a compreensão das diferentes raízes e de um percurso histórico longo e multifacetado.
A afirmação do poder real e os concelhos
Afonso III, o Bolonhês, revelou excecionais qualidades políticas e militares, como bom conhecedor da Europa e das melhores práticas governativas, quer em virtude da sua experiência em França, onde viveu durante 16 anos – sob a influência de sua tia D. Branca de Castela (1188-1252) e, mais tarde, ao lado de seu primo, Luís IX (S. Luís) rei de França, junto de quem ganhou fama de excelente homem de armas – quer ainda pelo facto de ter acompanhado sua irmã D. Leonor, falecida muito jovem, como rainha da Dinamarca (1211-1231). Esse conhecimento e as qualidades que tinha permitiram no seu reinado ter tomado medidas fundamentais para a afirmação de um reino moderno e precursor em muitos domínios – abrindo caminho ao reinado extraordinariamente fecundo de D. Dinis. Por exemplo, as Cortes de Leiria de 1254 são um momento fundamental, por serem as primeiras que contam com a participação do Terceiro Estado – o Povo, fator premonitório na configuração da legitimidade política no final da Idade Média. Com especial significado, em termos práticos, para a afirmação do reino de Portugal, merece referência a conquista do Algarve e o complexo processo que conduziu ao seu reconhecimento. Em 16 de fevereiro de 1267, foi firmada a Convenção de Badajoz entre o rei de Castela Afonso X, o Sábio (poeta maior da nossa língua, o galaico-português), e o rei de Portugal, Afonso III. Este assumira a legitimidade real, após a guerra civil, que o opusera a seu irmão D. Sancho II, deixando o condado de Bolonha. O acordo firmado em Badajoz estabelecia que daí para o futuro o rei de Portugal renunciaria a qualquer direito sobre os territórios entre o Guadiana e o Guadalquivir a favor do rei de Castela, seu sogro, desde que desposara sua filha D. Beatriz em 1253. Assim, foram cedidas as terras de Aroche e Aracena – estabelecendo-se que da confluência do rio Caia à foz do rio Guadiana, o limite da fronteira entre os domínios dos dois monarcas seria este curso de água. A norte de Elvas, as terras de Arronches e Alegrete ficariam pertencendo ao rei de Portugal e ao de Leão e Castela as de Marvão e Valença de Alcântara. Afonso X renunciava, deste modo, definitivamente ao reino do Algarve, ordenando que se fizesse a entrega imediata ao rei de Portugal dos castelos ainda à guarda dos seus lugares-tenentes. A Convenção de Badajoz, permitiu começar a regularizar a fronteira que seria estabelecida definitivamente por D. Dinis em Alcanizes (1297), faltando ainda incorporar no reino de Portugal a comarca de Riba Coa. Este acordo de Badajoz, assumiu especial importância, pois deu a D. Afonso III o papel crucial de definidor do Reino de Portugal – não apenas nos seus limites essenciais, mas na sua organização política, económica, cultural e administrativa, com novo centro de poder em Lisboa, em lugar de Coimbra. Para compreender o significado pleno deste papel, temos de recordar que o reino do Algarve (Al Gharb do Al-Andaluz, ocidente da Andaluzia) coincidia parcialmente, a oeste, com a antiga taifa ou reino de Niebla, que tinha permanecido depois da conquista de Sevilha por Castela nas mãos de Ibn Mahfut. Este, para salvaguardar a sua autonomia, manifestamente precária, declarou-se vassalo do rei de Castela, Afonso X, desde 1253, tendo reconhecido em 1262 a definitiva perda da independência. No entanto, ainda antes de Afonso X ter sucedido a Fernando III, em 1252, já Afonso III de Portugal tinha concretizado a conquista do Algarve, em 1249. Tal não teve, porém, reconhecimento de Castela, em virtude de compromissos assumidos com o rei deposto Sancho II, o que motivou que Afonso X, uma vez aclamado, tenha tomado medidas no sentido da afirmação da soberania sobre o Algarve – pedindo mesmo pessoalmente à Santa Sé a restauração do bispado de Silves. O conflito entre os dois monarcas apenas foi atenuado a partir do casamento de Afonso III com D. Beatriz, filha de Afonso X (1253). O casamento com a condessa de Bolonha, D. Matilde, foi declarado nulo pelo Papa para permitir a solução política que consolidou os poderes do rei de Portugal. Apesar de tudo, ainda em 1254 Afonso III protesta com veemência contra os atos unilaterais de Afonso X em território algarvio, no tocante à posse de Lagos, Albufeira, Faro, Tavira e Silves. O Papa apela, entretanto, a um acordo efetivo e Afonso III parece aceitar uma solução jurídica transitória – Afonso X continuaria a considerar-se Senhor feudal do Algarve, mas Afonso III reivindicava o domínio efetivo do território. Em 1261, nasce o futuro rei D. Dinis, sendo em 1263 nomeada uma comissão entre os dois reinos para tratar da divergência de fronteiras. Em 1264, Afonso X cede, porém, às pretensões portuguesas e atribui os seus direitos a seu neto D. Dinis, por ser de seu sangue, estabelecendo uma contrapartida de cinquenta lanças. Essa solução seria, contudo, transitória até à celebração da Convenção de Badajoz. À definição da fronteira, associa-se a institucionalização política, jurídica e administrativa de Afonso III, reconhecido como rei de Portugal e do Algarve. É o tempo da nomeação de um Bispo pelo rei de Portugal, Frei Bartolomeu, bem como da centralização da coroa, da política anti senhorial e da aliança do poder real com os Concelhos por contraponto aos poderes do Alto Clero e da Alta Nobreza – que Sancho II não tinha assegurado, enfraquecendo a independência do Reino. O antigo reino de Niebla ficou, assim, dividido pelo rio Guadiana, cabendo ao rei de Portugal o Algarve. Com a morte de Afonso X, sua filha D. Beatriz, como testamenteira, ainda foi designada para receber o reino de Niebla, num afloramento do conflito com Sancho IV. D. Dinis, sucedendo a seu pai (1279), garantirá plenamente a orientação do «Bolonhês», reforçando-a definitivamente – pela prevalência centralizadora e redução dos poderes senhoriais, pela fronteira e pela língua. D. Afonso III consolida o poder real e a Administração pública, torna-se Rei de Portugal e do Algarve, escolhe Lisboa como sede do poder real e prenuncia as grandes reformas de seu filho, D. Dinis.
A ação de D. Dinis: fronteira, língua, educação
Dinis, sucessor de D. Afonso III, aproveitou o conflito com Castela para reforçar a sua posição e para lançar um conjunto de medidas que definiram a organização política do reino e contribuíram decisivamente para criar uma identidade e uma consciência coletiva. Quando, em 12 de setembro de 1297, em Alcanizes (ou Alcañices) os monarcas de Portugal e Castela acordaram no estabelecimento de fronteiras entre os dois reinos, estavam porventura longe de prever o alcance desse seu ato – por um lado, abriam caminho ao entendimento de que as fronteiras tinham uma importância política e territorial e, por outro, marcavam os limites mais estáveis e duradouros do continente europeu ao longo dos séculos. A instabilidade do momento, sob os efeitos da morte de Afonso X, a guerra civil castelhana, as reivindicações do malogrado Sancho IV, a sucessão extemporânea do filho deste, Fernando IV, ainda criança, a regência de D. Maria de Molina, viúva de Sancho IV, não permitiam antever a longa vigência desse entendimento, que chegou aos nossos dias… D. Dinis aliara-se a Aragão e apoiara os infantes D. João e D. Afonso de La Cerda. Chegara a ir, em 1296, de Salamanca a Tordesilhas e a Simancas, mas não ousara avançar para Valhadolid. Então recuou até aos castelos de Ribacoa, ainda sob jurisdição leonesa, e redefiniu assim as bases da nova fronteira. Essas praças juntar-se-iam (em Alcanizes) a Olivença, Campo Maior, Ouguela, S. Félix de Galegos, Moura e Serpa. Portugal desistia de Aroche, Aracena e Aiamonte e o rei prometia fazer o casamento de sua filha D. Constança com Fernando IV, oferecendo trezentos cavaleiros para combater D. João de La Cerda. É certo que ainda tentou perceber se poderia ter mais ganhos de causa. Chegou mesmo a propor a D. Maria de Molina que D. João fosse aclamado rei da Galiza, mas sem êxito. Esperou no Sabugal, para ver como decorriam os acontecimentos, mas tudo culminaria nas bodas de D. Constança com Fernando IV, em janeiro de 1302, selando o acordo de paz e de ajuda, que de facto se cumpriu…
O Tratado de Alcanizes é um símbolo. É o Tratado de Fronteiras mais antigo da Europa. Castela e Aragão reconheciam a D. Dinis uma autoridade inequívoca. A Crónica de 1344 recorda, aliás, a solene comitiva de mais de mil nobres que o rei de Portugal levou à fronteira castelhano-aragonesa, em junho de 1304, por ocasião da arbitragem a que foi chamado. A ocasião foi aproveitada para selar um solene tratado de paz envolvendo os três reinos, Portugal, Castela e Aragão. O prestígio de D. Dinis não precisava de demonstração e não tardaria a fazer-se ainda o consórcio do infante D. Afonso com D. Beatriz, irmã de Fernando IV. Não foram regateadas ajudas e apoios, nos domínios militar e político, sendo de destacar o importante pacto (extensivo a Aragão) de defesa e conservação dos bens da Ordem dos Templários, perante os ataques de Filipe, o Belo, rei de França, e depois do papado, num entendimento que culminaria em 1319 na fundação em Portugal da Ordem de Cristo.
Pode dizer-se que foi na viragem dos séculos XIII para XIV que o reino de Portugal reforçou a sua posição no contexto peninsular. Depois da guerra civil, que opusera o fraco D. Sancho II a D. Afonso III, prevaleceu uma política de aliança com os concelhos e de reforço destes, para limitar o poder e a influência do alto clero e da alta nobreza. Na fórmula consagrada na moderna historiografia: o Estado precedeu a Nação e a vontade política construiu Portugal… Entretanto, o longo conflito com a Santa Sé em matéria eclesiástica (1267-1290) foi solucionado por D. Dinis – levando à clarificação dos poderes do rei, dos concelhos e dos bispos, quanto a privilégios eclesiásticos, coordenação de alçadas das autoridades judiciais civis e cobrança de dízimos municipais. As relações com os bispos tornaram-se mais pacíficas, mas ficou clara a importância da articulação entre a Coroa e os concelhos e contrariada a excessiva concentração fundiária pelo clero.
O êxito de D. Dinis deveu-se essencialmente ao prestígio que alcançou, já que manteve, no essencial, as orientações de seu pai. A regularização das receitas públicas e o crescimento económico permitiram a existência de capacidade financeira para custear as ações militares externas (e limitar os conflitos internos com a alta nobreza). O prestígio foi, assim, conseguido na ação ibérica, mas também na política interna: de reordenamento do aparelho administrativo; de atribuição de forais aos municípios; de acompanhamento das comunas judaicas e de “mouros forros”; de regularização na cobrança das receitas; de fomento das atividades agrícolas e comerciais; de concessão de feiras francas (no Douro e na estrada da Beira); de realização de Inquirições Gerais e de afirmação de reserva para o rei da distribuição de poderes e dons aos membros da corte; de adoção de novas regras de recrutamento militar nos concelhos (“besteiros de conto”); da nacionalização das Ordens religiosas militares (Santiago, Templários/Cristo); da criação de coutos de homiziados, que previam o cumprimento de penas em zonas fronteiriças pouco povoadas; da concretização de uma lei sobre tabeliães e selos dos concelhos; da criação da bolsa de mercadores para apoio aos portugueses que comerciavam em França, Inglaterra e Flandres, na proteção da atividade mineira (ferro, mercúrio, ouro…); e da nomeação do genovês Manuel Pessanha para o comando da frota real (1317), além da regularização do pinhal de Leiria – lugar da produção de madeira para a construção de navios e proteção para os terrenos agrícolas. Fernando Pessoa referirá D. Dinis como fundador da nova potência Marítima, chamando-lhe “plantador de naus a haver”.
O casamento em junho de 1282 com D. Isabel (Rainha Santa), filha de Pedro III, o Grande, de Aragão, permitiu uma ligação diplomática, política e económica fundamental. E temos de invocar a importância da influência franciscana, a abrir novos horizontes e mentalidades e uma nova visão do mundo e da história. Como salientou Jaime Cortesão, as festas do Espírito Santo nos Açores ou no Brasil (mas também no continente, no Penedo, em Sintra) são uma sequência da presença franciscana a partir da presença da Rainha Santa Isabel. Por outro lado, deve lembrar-se o messianismo de Joaquim de Flora, frade calabrês, que considerava, depois das Idades do Pai (Antigo Testamento), do Filho (Novo Testamento), uma terceira idade do Espírito Santo, de que a festa de Pentecostes é a celebração suprema, com a coroação de um Menino e organização de um bodo (sopa do Espírito Santo, carne de boi, massa sovada…) para todos. As artes e as letras tiveram neste tempo um desenvolvimento ímpar. A Biblioteca de D. Dinis é um exemplo notável de abertura de espírito, de curiosidade intelectual e de sensibilidade (ou não fosse ele um notável poeta, na linhagem de seu avô, Afonso X, o Sábio). O Estudo Geral de Lisboa, futura Universidade, referenciado em 1 de março de 1290, constitui indicador de que a autonomia política necessitaria da capacidade para a criação de uma elite intelectual, de clérigos e legistas (homens de leis, hoje juristas), apta a corresponder às novas exigências de uma Administração pública centralizada e exigente, sem recurso a instâncias estrangeiras. Cerca de 1296, a adoção da língua vulgar (o galaico-português), em vez do latim, nos documentos oficiais da chancelaria constituiu outra medida de profundo alcance, com consequências no desenvolvimento da língua portuguesa, que assim se reforçou e se enriqueceu. A medida levou à consagração da prevalência da instância civil sobre a eclesiástica. Fronteira, língua, Estudo Geral, independência económica (agricultura, marinha e pesca) definem ventos novos a soprar nesse momento de reforço da “autonomia política e cultural”. O Estado constitui-se e a Nação começa a consolidar-se.
Agostinho de Morais