Apesar dos contrastes, os aspetos comuns e as influências diversificadas e entrecruzadas tornam difícil a definição das regiões. Percebe-se, aliás, a resistência à regionalização. No fundo, “o que caracteriza as regiões geográficas de Portugal é o padrão miúdo e a rica variedade de aspeto e contrastes” (p. 141). As transições são graduais e, de novo, o Mediterrâneo e o Atlântico marcam os dilemas de definição. “A Estremadura recorda a Ática e o Lácio, o Alentejo os planaltos cerealíferos da Sicília, mas apenas o Algarve constitui uma fímbria marítima comparável à Fenícia ou ao Levante Espanhol” (p. 142). A faixa litoral portuguesa é entrecortada por falhas e deslocações, de idade e natureza diversas, por vagas erosivas e pelo contraste entre as gargantas fundas, secas no Estio, e os grandes rios vindos do centro da Península. As regiões são definidas pela alternância entre as influências mediterrâneas e atlânticas – o Norte Atlântico, o Norte Transmontano e o Sul. “À primeira essencialmente oceânica, contrapõe-se o bloco de regiões interiores do Nordeste, que as montanhas separam das influências marítimas; o baixo Mondego, a orla do maciço antigo e o sopé da Cordilheira central, limitam-nas a ambas do resto do País, onde a meridionalidade se traduz pela dominância progressiva do carácter mediterrâneo” (p.144).
O Norte Atlântico é o “tronco antigo e robusto” da nação, dominado pela abundância de chuvas, pela riqueza da terra e pela vitalidade das populações. É uma região de intensa diversidade e de policultura. O Porto velho é o polo histórico indiscutível da região, mas Braga pontua como sede do velho arcebispado. A diversidade urbana coexiste com a intensidade rural. As montanhas do Minho, as serras do Douro e do Vouga assemelham-se, mas o povoamento dá-lhes múltiplas facetas na atividade e nas tradições. O Noroeste é, desta forma, uma “unidade natural definida pelo predomínio dos caracteres atlânticos, unidade histórica mantida através de uma população antiga e densa que, pelo seu número e homogeneidade, veio a constituir o elemento aglutinante do Estado português” (p.148). Nesta síntese feliz, Orlando Ribeiro dá-nos o sinal das diferenças, que se unem e se completam, e dos elementos comuns. Sentimos a História a fazer sentido – e os reinos cristãos a espraiarem-se naturalmente para a Beira Alta, em direção ao Mondego e à Cordilheira Central, passando pelo Dão vinícola e por Viseu e indo até à Estrela, “enorme reservatório de águas límpidas e de grandes desníveis” (p.149). A Beira é a Beira-Serra que marca a transição do Atlântico para o Mediterrâneo, percebendo-se bem como a cultura portuguesa sofre de uma dupla construção, de norte para sul e de sul para norte.
No Norte Transmontano “a paisagem carrega-se de tons severos, cinzentos, acastanhados. A luz torna-se mais crua, a terra mais dura e a gente mais retraída”. «Para cá do Marão, mandam os que cá estão!» O arvoredo rareia. Desapareceram os castanheiros, atacados da moléstia chamada da tinta, e a batata vai cultivar-se no planalto. A Terra Fria e a Terra Quente marcam uma paisagem de extremos. Nas vertentes do Douro, os matagais deram lugar no séc. XVII aos formosos vinhedos do “vinho fino”, nos terrenos de xisto. A Régua é o epicentro e dali sai o vinho, Douro abaixo, para se tornar do Porto, sob os auspícios da colónia britânica. A praga da filoxera do séc. XX dizimou as vinhas. Algumas foram substituídas por amendoeiras e oliveiras. Mas o vinho continuou a ser o grande símbolo da região, que ainda lembra a memória do Barão de Forrester, morto no Douro, quando a Ferreirinha, D. Antónia, se salvou…
No Sul, o Alentejo singulariza-se pela monotonia da planície. Mas as terras meridionais são complexas e heterogéneas, começando na zona de transição do sopé da Cordilheira Central, a sul do Fundão, na Portela de Alpedrinha, onde a cova da Beira anuncia as planuras de além Tejo, indo, para oeste, através da planície aluvial do Mondego e da cidade de Coimbra até ao grande maciço florestal de Leiria. Depois, há o polimorfismo da Estremadura, os maciços calcários, os barros basálticos dos arredores de Lisboa, o microclima da romântica Sintra, a área de influência de grande metrópole mediterrânea e a península de Setúbal, o santuário natural da Arrábida e a sua floresta mediterrânea. Para leste, estão o Ribatejo, a lezíria, Santarém e o vale celebrado por Garrett em “As Viagens na Minha Terra”, que abre para sul na “imensidão de terra lisa ou apenas quebrada em frouxas ondulações…” Aí está Évora, “a cidade mais bela de Portugal”, no dizer do mestre, repositório vivo da história portuguesa. E vêm depois o Baixo Alentejo, com Beja como centro, e os dois Algarves – a serra e a orla marítima, lugar de encanto e amenidades – “nenhuma outra região portuguesa possui uma rede urbana tão antiga, tão densa e tão importante”, com uma profunda organização romana e muçulmana, tendo esta passado quase intacta ao domínio português…
O Portugal de Orlando Ribeiro é uma encruzilhada de influências, entre o Mediterrâneo e o Atlântico, atenta à complexidade e à reversibilidade dos movimentos de uma geografia fundamentalmente humana. Por isso, a “severa disciplina da Ciência”, a que sempre foi fiel, não deveria fazer perder “a amorosa compreensão da terra e da gente, que constitui a essência da geografia”.
História, vontade e cultura
Importa considerar a procura da identidade enquanto busca de nós e dos outros a partir da dignidade humana, considerando diferenças e pluralidade, com apelo ao universalismo. A cidadania inclusiva dos nossos dias, a cultura dos direitos fundamentais, a responsabilidade cívica, o capital social — tudo nos obriga a projetar, para além da perspetiva egoísta, a defesa da pessoa humana. Dir-se-á, pois, que a pessoa não pode ser compreendida sem a comunidade em que se insere, sem a pertença e sem os laços que a ligam aos outros membros desse grupo de proximidade. Sem dúvida que assim é, no entanto, não se trata de pôr primeiro a comunidade ou o indivíduo, mas de considerar a pessoa humana (“o outro que era eu”, de Ruben A.) como ponto de encontro entre o universalismo da dignidade e a diferença relativa a várias pertenças. Em lugar do primado das ligações à comunidade numa lógica exclusiva, encontramos a necessidade de assumir uma perspetiva inclusiva. Se a cidadania dos antigos era de alguns, hoje preocupamo-nos com o direito de todos, ligando igualdade e diferença.
A cultura é, assim, entendida como um lugar de encontro entre o que recebemos das gerações que nos antecederam, o património construído e o património imaterial, os monumentos e as tradições, as pedras mortas e as pedras vivas, a natureza e a paisagem, a ciência e a técnica, mas também o que criamos hoje — o valor acrescentado das novas gerações, a inovação, a experiência e a aprendizagem, lembrança, memória, inovação.
A cultura é, assim, sementeira e construção, tradição e contemporaneidade, aprendizagem e transmissão de saberes, conhecimento e compreensão — receção e aspiração. Afinal a “destruição criadora” (Joseph Schumpeter) corresponde à dinâmica de criar, de substituir e de completar. Ao falar de cultura temos, por isso, de falar de memória, não da memória passiva que conduz ao ressentimento, mas da memória que permite criar condições para o respeito e para a compreensão. Em lugar do excesso da memória deve cultivar-se a memória equilibrada e justa. O dever de lembrar obriga a ser justo. E numa Europa com muitos séculos de guerras civis, com a repetição e a recorrência de conflitos insanáveis temos de compreender a importância desse equilíbrio — entre memória e lembrança como fatores de coesão e de regulação pacífica dos conflitos.
O conhecimento da História, o rigor crítico do seu estudo e da sua investigação, a sua aprendizagem bem como a valorização dos acontecimentos constituem elementos de combate à indiferença e à ignorância. Longe dos mitos, como simplificação da lembrança histórica, importa considerar a compreensão de quem somos e do que caracteriza a nossa cultura. A memória corresponde à exigência de cultivar as raízes, ao culto dos valores para além do seu preço, aos fatores de coesão e à fundamentação das instituições e dos instrumentos de regulação pacífica dos conflitos. Deste modo, a cidadania, que se liga à polis, ao lugar de encontro e à decisão — ao ethos e ao oikos, do lar e da casa — permite-nos despertar, seguindo a lembrança e a memória, a herança e o património comum, despertar para a liberdade, para a emancipação e para a responsabilidade. E aqui nos encontramos no cerne da paideia cívica, da aprendizagem cidadã e ética, do respeito pela dignidade da pessoa humana. Os assuntos da memória não podem ficar, por isso, entregues ao zelo do ódio.
Os elementos fundamentais da cultura portuguesa
Quem somos? A pergunta é de difícil resposta, mas a leitura de “Os Elementos Fundamentais da Cultura Portuguesa” de Jorge Dias (Imprensa Nacional Casa da Moeda, 1985) constitui um precioso auxiliar da reflexão. O texto data de 1950, correspondendo a uma conferência proferida em Washington. O autor põe-nos, porém, de sobreaviso em relação à falibilidade do exercício, e é essa consciência que torna a reflexão atual, já que não contém pretensiosismo ou ilusão sobre as pistas lançadas.
Os portugueses são decerto diferentes, num mundo em mudança acelerada, mas ficam os caminhos e as referências, que funcionam pelo menos relativamente à herança (ou a parte dela) que recebemos. O texto de Jorge Dias não pode ser lido isoladamente. Temos de lembrar o que José Mattoso tem escrito sobre uma identidade aberta, do mesmo passo que são hoje imprescindíveis outras e diversificadas leituras, desde Eduardo Lourenço a Boaventura Sousa Santos, passando por José Gil, Vasco Pulido Valente, Manuel Clemente e José Manuel Sobral. Jorge Dias diz-nos, por exemplo: “o português gosta de fazer projetos vagos, castelos no ar que não pensa realizar. Mas no seu íntimo alberga uma secreta esperança de que as coisas aconteçam milagrosamente”. Eis a reminiscência do sebastianismo. Mas, “quando se aproxima a catástrofe, abrem-se-lhe os olhos da razão, e então é capaz de desenvolver tal energia e com tal eficiência que a isso é que se poderia chamar milagre”.
A cada passo, notamos “a capacidade de adaptação”. Afinal, “o português assimilou adaptando-se”. A miscigenação caracterizou a nossa presença no mundo, graças à adaptabilidade. Como realidade cultural complexa, albergamos na nossa personalidade fatores múltiplos e heterogéneos, fruto de um “melting pot” que se torna um autêntico quebra-cabeças para nos definirmos. A ironia, benévola, mordente ou sarcástica, pesa mais do que o sentido de humor. O “sentimento do ridículo” e o “medo da opinião alheia” limitam os “impulsos generosos”. Preferimos a dimensão humana, mas o individualismo torna-se por vezes doentio. Tendemos a preferir o género lírico ao trágico, sem esquecer o picaresco.
A voz da terra choca com a “loucura” do mar. Alternamos o sentimento de euforia com a sombra da depressão. As glórias passadas constrangem-nos. Saudade, destino, fado, sonho coexistem. Somos sonhadores e seres de ação, quando queremos. O temperamento do português pode levar à desistência à primeira adversidade. Mas também à persistência. E tantas vezes ficamos a meio caminho, antes dos resultados, a chorar como Mofina Mendes diante do leite derramado. “Soubemos traficar, mas faltou-nos sempre o sentido capitalista”. Em suma, seremos “um povo paradoxal e difícil de governar”. Os nossos defeitos “podem ser” as nossas virtudes, e as nossas virtudes os nossos defeitos, “conforme a égide do momento”…
Agostinho de Morais