A VIDA DOS LIVROS
de 20 a 26 de agosto de 2012
A edição pela D. Quixote das Obras Completas de Urbano Tavares Rodrigues constitui um acontecimento importante, que permite ao leitor português ter contacto com a obra de um autor multifacetado, representativo de uma corrente de pensamento e de escrita que se insere na convergência complexa do melhor naturalismo português, mas que compreende ainda o neorrealismo, um certo existencialismo, além da influência de Fernando Pessoa, sobretudo no caso de Álvaro de Campos. Não podemos esquecer, contudo, uma relação muito especial que existe entre o autor de «Bastardos do Sol» (1959) e o extraordinário escritor de «Gente Singular», Manuel Teixeira Gomes, que Urbano Tavares Rodrigues tem persistentemente procurado resgatar de um injusto esquecimento.
Dordio Gomes, Sem título, CAM, F. C. Gulbenkian
DIÁLOGO COM A LITERATURA
Urbano Tavares Rodrigues representa na literatura portuguesa a compreensão da importância de uma renovação baseada na necessidade de atualização do naturalismo e do simbolismo pela compreensão inovadora do modernismo. Preocupado com os temas sociais e declarando expressamente as influências ideológicas do marxismo, o escritor procura, porém, abrir novas perspetivas, que ultrapassam as fronteiras de escola. E é o seu conhecimento da melhor literatura portuguesa do início do século XX, pela qual alimenta uma evidente afeição, que lhe favorece um reconhecimento próprio e um lugar especial na contemporaneidade. Em «Os Cadernos Secretos do Prior do Crato» (2007) escolhe um herói de causas perdidas, mas que não quer desistir, apesar de todos os impedimentos e dificuldades. E aí encontra um ideal que permanentemente choca com a realidade. A obra é, a um tempo, autobiográfica e de reflexão sobre a mudança do mundo e sobre a procura de um ideal. O heroísmo e a sensualidade encontram-se e completam-se. O autor e a personagem misturam-se na dialética da narrativa, mas é o tempo presente que vem à tona. Um país em crise reclama a descoberta de saídas – e D. António é a referência, no entrecruzar de experiências pessoais e de apelos contraditórios. Os amores do protagonista representam a vida do dia a dia, enquanto a procura do absoluto significa a força da transcendência perante o que é comum. Estamos em presença de quem Jorge de Sena designou como «O Indesejado», que procura suceder ao «desejado», desaparecido nas areias de Alcácer Quibir. Para Urbano Tavares Rodrigues, no entanto, o desejo da transformação do mundo não é suficiente, é preciso «lutar no concreto por cada ser humano», daí haver uma preocupação especial com a misericórdia, com a compaixão e com a entreajuda, para além dos sistemas e das abstrações. É este sentido humano e literário que torna a arte de Urbano como algo perene e forte, insuscetível de se deixar aprisionar. A fraternidade e a dignidade são, assim, marcas da obrigação humana de emancipação e de autonomia. E é esse paradoxal caminho que encontramos no símbolo de D. António, Prior do Crato, entre a compaixão e o apelo à redenção da pátria e a um mundo melhor. Estamos, pois, ante uma paradoxal via, onde sentimos a presença de um herói misterioso e mítico. Fiel a uma antiga matriz marxista, que não renega, apesar da preocupação crítica, Urbano Tavares Rodrigues admira em Karl Marx, não o estudioso do socialismo científico e da sua necessidade, mas o crítico das condições que conduzem à exploração e à escravatura de muitos seres humanos. Por isso, afirma não haver dúvida de que «o desaparecimento da antiga União Soviética veio demonstrar que havia certos erros que não podem ser cometidos». E o certo é que se nota nas preocupações espelhadas nos seus textos a preocupação de ter presente uma componente crítica, mitigada pelo ideal.
UMA ESCRITA ATENTA AO MUNDO
Escritor atento ao mundo que o rodeia, como no recente «Escutando o rumor da vida» (2012), Urbano não esconde um sentido eclético, fruto de diversas influências, desde o naturalismo tardio ao modernismo, passando por um existencialismo decantado pela atenção às pessoas concretas (notando-se uma natural e serena proximidade de Maria Judite de Carvalho) – no entanto é essencialmente um cultor exigente da língua portuguesa. Não podemos, de facto, compreender o romancista sem chegarmos a Manuel Teixeira Gomes e à sua influência. Sobre a obra do autor de «agosto Azul» afirma: «são conjuntos de crónicas e cartas, de apontamentos paisagísticos perfeitos, de contarelos onde o desejo estua, esbocetos tão harmoniosos e irónicos que só poderia colori-los uma arte tão visual e experiente como a sua, que mergulhando no naturalismo e no decadentismo, recupera ao mesmo tempo as graças verbais de um Frei Manuel Bernardes, de um Francisco Manuel de Melo e a elegância de Garrett, o domínio da língua de um Camilo Castelo Branco». Esta ligação de Urbano Tavares Rodrigues a Teixeira Gomes é dos aspetos mais ricos entre os diálogos literários da nossa língua. Encontramos um cosmopolitismo e um amor à plasticidade da língua, que nos permitem também dar um especial valor a Fialho de Almeida e até compreender melhor Afonso Lopes Vieira e António Patrício. É deliciosa a invocação de «Gente Singular»: «um prodígio de graça vocabular, de capacidade descritiva, tão à vontade a revelar-nos os recessos eróticos de Amesterdão e o mistério das suas mulheres como a satirizar os podres e as vanglórias do Algarve abastado e as suas pendurezas, ou o próprio clero, em sua banda de um cómico delirante, que gira em torno do cónego Simas e suas manas no conto epónimo». Sente-se em Urbano Tavares Rodrigues, sem cedência fácil e com originalidade, a influência da verve e do talento do escritor algarvio, infelizmente não suficientemente valorizado na nossa literatura por razões talvez circunstanciais e de um moralismo fechado e rígido. Deve-se, contudo, ao escritor e ao estudioso de «Teixeira Gomes: o discurso do desejo» uma persistente ação no sentido de pôr o grande artífice da língua no lugar que, por certo, o futuro lhe reservará. Por outro lado, não esqueçamos ainda que Urbano Tavares Rodrigues afirma que não teria sido o escritor que é se não tivesse lido Fernando Pessoa – que «estilhaça a língua portuguesa, sobretudo com Álvaro de Campos». É esta ponte que enriquece a criação literária do autor de «Uma Pedrada no Charco», para além de qualquer receita. Devemos, assim, referir que a obra e o magistério cultural e literário de Urbano têm de ser devidamente postos em destaque, para além de circunstanciais e respeitáveis razões ideológicas. Sente-se o forte amor à grande literatura. Nesse sentido, como o demonstrou, de modo pioneiro, com Teixeira Gomes (por razões outras), o culto da língua e da literatura têm necessariamente de se libertar de preconceitos e outras menoridades, deixando de ver o naturalismo português como um condomínio exclusivo das celebridades consagradas.
Guilherme d’Oliveira Martins