A VIDA DOS LIVROS
de 23 a 29 de Abril de 2012
Assinalaram-se, no dia 18 de Abril, 170 anos do nascimento de Antero de Quental (1842). Daí que, para homenagear o poeta açoriano chamemos à atualidade o intenso e muito fecundo diálogo que Eduardo Lourenço tem, ao longo do tempo, estabelecido com o poeta micaelense. Por isso mesmo, o ensaísta faz questão de assumir a necessidade de uma compreensão da importância dos mitos para a solução dos nossos grandes enigmas.
UM SEGUIDOR CRÍTICO DA GERAÇÃO DE 70
Eduardo Lourenço é, parece não haver dúvidas, um seguidor crítico da Geração de Setenta. E, ao lermos hoje «As Causas da Decadência dos Povos Peninsulares» de Antero de Quental depressa percebemos que há ecos evidentes desse momento fundador da modernidade no ensaísmo de Eduardo Lourenço. Se bem lermos «As Causas», compreendemos que há aí uma curiosa convergência de preocupações e ideias no sentido da especificidade da cultura portuguesa, como idiossincrasia resultante de várias influências que confluíram na Finisterra peninsular, que significa, a um tempo, síntese das diferenças e apelo à abertura. E é assim que encontramos, neste duplo movimento de integração e de dispersão, um sentido crítico e heterodoxo, bem simbolizado em Antero, a pensar uma decadência, que procura denunciar e superar, e uma exigência de um caminho de emancipação, capaz de conduzir ao reencontro com as raízes e a uma renovação assente na evolução e na justiça. Para trilhar um novo sentido, haveria que fazer a crítica das condições propiciadoras da decadência: “Erguemo-nos hoje a custo, espanhóis e portugueses, desse túmulo onde os nossos grandes erros nos tiveram sepultados». E encontramos os fenómenos capitais definidores desse decaimento: «três, e de três espécies: um moral, outro político, outro económico. O primeiro é a transformação do catolicismo, pelo Concílio de Trento. O segundo, o estabelecimento do absolutismo, pela ruína das liberdades locais. O terceiro, o desenvolvimento das conquistas longínquas. Estes fenómenos assim agrupados, compreendendo os três grandes aspetos da vida social, o pensamento, a política e o trabalho, indicam-nos claramente que uma profunda e universal revolução se operou, durante o século XVI, nas sociedades peninsulares». E o que Antero verbera é o afastamento e a distância dos povos peninsulares relativamente a uma Europa “pensante e industriosa” e a perda de qualidades antigas – «o seio do povo era fecundo; saíam dele santos, individualidades à uma ingénuas e sublimes, símbolos vivos da alma popular, e cujas singelas histórias ainda hoje não podemos ler sem enternecimento».
A SOMBRA DAS CONFERÊNCIAS DO CASINO
Sente-se na leitura da conferência do Casino Lisbonense a compreensão de que há potencialidades culturais que importa aproveitar e desenvolver – que se demarquem do dogmatismo e da intolerância. Mais do que a herança do iluminismo, que deve ser entendida e superada, estamos perante o abraçar da mensagem liberal de Garrett e Herculano adicionada pelo valor da igualdade, que deveria completar a liberdade, como resposta às novas injustiças do industrialismo. Temos então uma ideia de Europa a reconciliar com a liberdade e a justiça, capaz de ultrapassar os efeitos das guerras religiosas. E é assim que o poeta dos «Sonetos» assume a ligação entre uma vocação universalista e aberta e uma heterodoxia demarcada de um pensamento conformista e acrítico. E vem à memória o diálogo de Damião de Góis e de Erasmo de Roterdão, que até pode dizer-se prolongado no sentido crítico do Padre António Vieira, facto tanto mais evidente quanto é certo que conhecemos hoje a «Clavis Prophetarum» e podemos perceber que, apesar do seu providencialismo, há um núcleo muito interessante e rico que pressupõe uma ideia fecunda e premonitória de universalismo crítico, que permite relermos o «Quinto Império» à luz de um humanismo de horizontes abertos, que pressupõe a génese de uma cultura de respeito mútuo, assente na eminente dignidade das pessoas. Os dissabores de Vieira com a Inquisição, a procura de um entendimento com judeus e cristãos-novos e a ideia de um império espiritual são elementos que contrariam, no fundo, uma leitura apressada e conjuntural da obra do orador. E, numa perspetiva mais ampla, lembramo-nos de Jaime Cortesão e da sua inteligente ligação entre fatores democráticos, universalismo humanista (de raiz franciscana) e respeito crítico. Longe de qualquer tentação anacrónica, Antero vem dizer, com muita clareza, que não somos um povo eleito nem enjeitado, que temos virtudes e defeitos, como todos, mas que compreendemos a exigência de uma sociedade mais humana.
A PSICANÁLISE MÍTICA
Ora, Eduardo Lourenço tem, nesta linha, procurado persistentemente procede a uma «psicanálise mítica do destino português», com base no sentido crítico e autocrítico, na demarcação heterodoxa e na síntese de diversas dimensões culturais centradas na ideia de imperfeição. Diz-nos o ensaísta num texto hoje esquecido: «a mitologia é a verdade dispersa, túnica rasgada de um deus morto a quem só podemos ressuscitar juntando com paciência piedosa todos os pedaços. Esta tarefa é superior às nossas forças. Por isso, os egípcios confiavam a Ísis a missão divina de caminhar sozinha através da noite para fazer da seara cintilante das estrelas o corpo único do seu esposo ressuscitado, Osíris, o sol brilhante». E o certo é que nesse texto, intitulado «Ísis ou a Inteligência», de 1954, publicado recentemente na revista «Relâmpago» (nº 22, 4/2008), vê-se a atitude fundamental do pensador na sua relação com o mito e a História, compreendendo que a grande dúvida de Antero e da sua geração tinha a ver com a inserção dos mitos na tarefa de compreender e interpretar a evolução histórica. Os mitos procuram interpretar os acontecimentos. Oliveira Martins aproximou-se dessa ideia ao falar de um fundo céltico no sebastianismo e na personalidade coletiva dos portugueses. De facto, os mitos não servem por si para explicar, mas para desnudar, para revelar e para abrir o horizonte da crítica. Diz ainda Eduardo Lourenço: «perceber uma coisa é ver outra no lugar daquela que estamos vendo. Entender uma ideia é ver outra no lugar dela. Sempre a ausência é o pano de fundo da presença, mas essa ausência é a grande presença. O dia não brilha enquanto é dia, mas brilha na ausência, brilha e é dia sob o fundo da noite. Dia e noite jamais dormem na mesma cama, mas a nossa onde dormimos é noite e dia». Ao lermos este fragmento, vem-nos à memória a poesia de Jorge de Sena e a paixão de António Tabucchi por Fernando Pessoa. O mistério da interpretação heteronímica do autor do «Livro do Desassossego» tem a ver com aquilo que, melhor do qualquer outro, viu o ensaísta do «Labirinto»: para além da interpretação positivista ou formal, puramente racional ou idealista, tudo está na compreensão crítica da complexidade e da diversidade. Por isso, Eduardo Lourenço tem sido acusado de pecados contraditórios, ao recusar a interpretação unilateral e simplificadora, sabendo que a crítica deve ser sempre ambivalente, interrogando a ausência, porque «perceber uma coisa é ver outra no lugar daquela que estou vendo». O mito de Ísis está presente. E, quando na obra de Antero se fala de ironia espiritual para explicar a ambivalência pascaliana, temos de compreender que esse dilema é a vivência do sentido crítico como expressão da liberdade.
Guilherme d’Oliveira Martins