A VIDA DOS LIVROS
de 2 a 8 de Abril de 2012
A «Crónica do Descobrimento e Conquista da Guiné» da autoria de Gomes Eanes de Zurara é uma obra que, apesar de muito discutida, constitui um elemento fundamental para a compreensão da decisão política da coroa portuguesa para avançar nos descobrimentos da costa de África para além do Cabo Bojador. Seguimos a edição do Visconde de Santarém de 1841, feita a partir do original que se encontra na Biblioteca Nacional de França, pela Casa Aillaud, com impressão de Fain e Thunot.
UM CRONISTA CONTROVERSO
Gomes Eanes de Zurara (nascido entre 1410 e 1420, e falecido em 1473 ou 74) foi guarda-mor e conservador da Livraria Real e em 1454 foi provido no lugar de Fernão Lopes como responsável da Torre do Tombo, sendo o primeiro cronista dos Descobrimentos. Como cronista-mor do Reino é autor de: «Crónica da Tomada da Cidade de Ceuta», «Crónica da Guiné» e das «Crónicas do Conde D. Pedro de Menezes e a de D. Duarte de Menezes». A sua obra tem sido envolta em polémica, em especial pelo facto de a «Crónica da Guiné» ter sido acusada de parcialidade e de ser hagiográfica relativamente ao Infante D. Henrique. No entanto, vários têm sido os autores a rebater esse ponto de vista, uma vez que é indispensável situar Zurara no contexto historiográfico e político em que se inseria. A «Crónica da Tomada de Ceuta» é uma continuação da «Crónica de D. João I», sendo provável que Zurara se tenha baseado em elementos recolhidos por Fernão Lopes. Todo o debate sobre as razões da conquista de Ceuta tem, aliás, na sua base, a investigação persistente e serena levada a cabo a partir da crónica de Zurara. E se há quem se pergunte sobre se Fernão Lopes foi «moderno», por comparação com Zurara, a verdade é que o cronista dos feitos da Guiné desempenha a sua função com competência, tendo um pé na historiografia medieval e outro nas novas ideias que alimentarão o renascentismo. Nesse ponto ambos os cronistas representam, cada um a seu modo, a transição no entendimento e nos métodos. Por outro lado, é natural que o cronista seja intérprete de conceções dominantes e inovadoras do seu tempo. E aí Zurara segue as pisadas de Fernão Lopes, em especial para o caso da Crónica de D. João I, centrando-se no papel desempenhado pelos heróis que simbolizam os atos de maior relevância, como no exemplo de Nuno Álvares Pereira. Não há aí diferenças, mas tão só prismas diversos para a análise.
HOMENAGEM AO INFANTE D. HENRIQUE
No caso de Zurara é o Infante D. Henrique que o cronista enaltece. Importa destaca-lo à frente dos «mui nobres e excelentes», merecendo especial referência alguns episódios bélicos, capazes de recordar as reminiscências dos romances de cavalaria do ciclo bretão, mais do que a descrição dos movimentos políticos, propriamente ditos. Há muitas vezes erros e imprecisões, que merecem atenção, mas estes não devem pôr em causa a importância de uma obra indiscutivelmente marcante. Aliás, independentemente das certezas históricas, que nunca há, verifica-se, como afirma o Visconde de Santarém, uma preocupação de Zurara no sentido de fazer um relato impressivo, capaz de fazer compreender o sentido das decisões e dos acontecimentos fundamentais. Damião de Góis terá razão ao acusar o estilo: «escrevia com razoamentos prolixos e cheios de metafóricas figuras, que no estilo histórico não têm lugar», contudo importa ver-se que, mais do que o estilo, há o contacto do cronista com os protagonistas dos acontecimentos o que nos permite enaltecer a importância desta obra, que nas linhas e entrelinhas revela muito mais do que pode parecer à primeira vista – havendo ainda mistérios a desvendar que têm a ver com o desenlace trágico de Alfarrobeira e com a morte do Infante D. Pedro. E o certo é que há um longo percurso de investigação e de reflexão historiográfica para verificar que papel desempenharam os Infantes D. Henrique e D. Pedro, qual a intervenção de D. Afonso V e como se situará D. João II nesta evolução muito complexa. De qualquer modo, Zurara não esquece a diversidade dos acontecimentos, destaca as razões de índole económica (desde o tráfico de escravos ao comércio), aliadas às referências aos progressos no conhecimento das novas regiões por onde se aventuravam os navegadores portugueses. O certo é que Zurara é um qualificado cronista do seu tempo, preocupado com o excessivo peso das conceções providencialistas e empenhado na procura de objetivos estratégicos. Se nos reportarmos às cinco razões apontadas para a ação do Infante, o certo é independentemente de elas estarem ou não, desde o início, na mente do impulsionador da expansão, a verdade é que estamos perante a consagração de alguns pontos fundamentais, que foram (e são) elementos assumidos explicitamente pela ideologia imperial portuguesa. Recapitulemos, assim, as razões, que levaram o Infante a pensar avançar para Sul: a vontade de conhecer as terras existentes para além do Cabo Bojador; o desejo de saber se existiriam aí populações cristãs com quem se pudesse comerciar pacificamente; o interesse em ter um melhor conhecimento do poderio dos muçulmanos; a esperança de encontrar um príncipe cristão que se quisesse aliar aos portugueses no combate ao Islão, e o desejo de alargar a cristandade e de difundir o cristianismo.
UMA CONVERGÊNCIA DE FATORES
É difícil sabermos quando é que o objetivo da chegada ao Índico foi claramente assumido e em que circunstâncias. Não sabemos ao certo. A verdade é que o Infante D. Pedro trouxe, depois da sua viagem europeia, e a partir dela, um conjunto de elementos informativos de enorme qualidade, quer cartográfica (o mapa de Fra Mauro), quer o relato de viagem de Marco Polo até à China, além de outros relatos. Zurara conhecia esses elementos, sendo, deste modo, um exemplo de que os objetivos da Expansão foram sofrendo adaptações e ajustamentos, ao longo do tempo, influenciados desde o início por uma evidente contradição: por um lado, o alcance do bloqueamento ao crescimento do comércio no Levante mediterrânico pelo Islão; por outro lado, haveria que encontrar alternativas quer em termos de recursos económicos, quer na busca de sucedâneos para os produtos vindos do Oriente. No fundo, ao lermos Zurara, encontramos pistas indispensáveis para uma leitura da história europeia e mundial, a partir da complementaridade conflitual entre uma política de Estado e uma estratégia nacional baseada na vitalidade económica e na iniciativa dos diferentes agentes envolvidos.
Guilherme d’Oliveira Martins