A Vida dos Livros

A VIDA DOS LIVROS

«Leviatã» de Thomas Hobbes (INCM, 1995), com prefácio de João Paulo Monteiro e tradução do mesmo e de Maria Beatriz Nizza da Silva, é uma obra fundamental para o pensamento político moderno, uma vez que lança de modo pioneiro a reflexão sobre o contrato social e sobre o estado de natureza, obrigando à conceção da limitação do poder político.

A VIDA DOS LIVROS
de 30 de Janeiro a 5 de Fevereiro de 2012



«Leviatã» de Thomas Hobbes (INCM, 1995), com prefácio de João Paulo Monteiro e tradução do mesmo e de Maria Beatriz Nizza da Silva, é uma obra fundamental para o pensamento político moderno, uma vez que lança de modo pioneiro a reflexão sobre o contrato social e sobre o estado de natureza, obrigando à conceção da limitação do poder político.



OS VALORES DA DEMOCRACIA
«Por natureza, todos os homens nascem livres e por isso nenhum tem jurisdição política sobre qualquer outro». Quem o afirmou foi Francisco Suárez, professor em Salamanca e Coimbra, que se encontra sepultado em Lisboa na igreja de S. Roque. É um dos autores do seu tempo que critica, com veemência, a doutrina do direito divino dos reis. Por isso, afirma «nenhum rei ou monarca possui a autoridade política imediatamente de Deus ou por instituição divina, mas sim mediante a vontade e instituição humana». Deste modo, leva bastante longe a importância da legitimidade do exercício, o que «por mais paradoxal que possa parecer faz parte das fontes da democracia moderna», como recorda Diogo Freitas do Amaral, a partir da afirmação de W. Thiemer, na obra que temos vindo a seguir («História do Pensamento Político Ocidental», Almedina, 2011). O que estava em causa, muito claramente, era o combate da tirania, tema que viria a ser invocado na Restauração da Independência de 1640. Em contraponto, Jean Bodin apresenta-nos o conceito de soberania absoluta, teorizando sobre a não separação de poderes e sobre o direito divino dos reis. Mas o tema político fundamental do século XVII, relaciona-se com o fim da guerra dos trinta anos e com o novo conceito de soberania que resulta do tratado de Vestefália. Nasce progressivamente a ideia de um contrato social, o que obriga a pensar o «estado de natureza», entendido diferentemente pelos autores mais relevantes desse tempo. Assim, Thomas Hobbes lança os fundamentos contratuais do Estado Absoluto. Leviatã, o símbolo dessa realidade, é um monstro que combate outros monstros mais perigosos do que ele. O «estado de natureza» humano é egoísta e injusto. O homem é o lobo do homem. E o Estado visa corrigir esse mal, estando investido de um poder disciplinador efetivo que visa alcançar a paz e a proteção – para que o «estado de natureza» dê lugar ao «estado de sociedade». Recorde-se, contudo, que o alemão Althusius prefere a noção de soberania partilhada, uma vez que conhece bem a uma experiência de Estados confederais.


QUE «ESTADO DE NATUREZA»?
John Locke tem um conceito diverso de «estado de natureza», não necessariamente negativo e calamitoso. Pressupõe a existência de direitos individuais naturais, que envolvem a proteção da vida, da propriedade individual, da liberdade e da saúde, além de que «todo o homem tem o direito de punir o transgressor e de ser o executor do Direito Natural». O poder político deve, por isso, ser limitado, o que corresponde ao compromisso subjacente à «Gloriosa Revolução» inglesa (1688-89), essencial para a moderna conceção liberal de democracia. Montesquieu será, porém, o grande teórico da «separação de poderes como garantia da liberdade individual». É o reformista lúcido que teve o génio de propor em termos práticos a separação de poderes que a Inglaterra viria a concretizar, salientando não só a importância do equilíbrio de poderes, mas o papel fundamental de um poder judicial «passivo, obediente às leis e neutro». Mas o debate sobre o tema é muito intenso. Se Voltaire liga o despotismo esclarecido à proteção da esfera individual, o cidadão genebrino Jean Jacques Rousseau centra-se no «estado de sociedade» baseado na noção de «vontade geral», que torna ambígua a concretização do poder de assembleia – «a democracia consiste essencialmente na vontade geral e uma vontade não pode ser representada (por outrem), ou é a mesma ou é outra, não há meio-termo». O verdadeiro contrato social exigiria para Rousseau uma revolução democrática, para que seja garantida a todos a liberdade e a igualdade. No entanto, prevalece uma conceção de indivisibilidade do poder, a partir da vontade geral, o que gera efeitos contrários aos preconizados e reversibilidade do «estado de sociedade». E se o Abade Sieyès nos fala dos direitos do povo, Robespierre e Saint-Just defendem o império da virtude (depressa tornado «terror»), enquanto num sentido profundamente crítico, Edmund Burke, liberal de origem irlandesa, lança as bases do pensamento conservador, crendo na liberdade individual, na separação de poderes e apontando, essencialmente, para as perniciosas consequências do primado da «vontade geral» de Jean-Jacques. 


INDUSTRIALIZAÇÃO E NOVO MUNDO
A revolução industrial e o livre-cambismo abriram novos horizontes no pensamento político. Adam Smith fala-nos de uma «mão invisível», como Hugo Grócio referia o mar, «O Federalista» e Thomas Paine ligam o tema dos direitos individuais e da liberdade religiosa, a procura da felicidade e a justiça distributiva à construção de um «contrato social» inteiramente novo, de que o paradigma são os Estados Unidos. O século XIX será oportunidade para um riquíssimo fervilhar de ideias, a partir do debate lançado no século XVIII. Enquanto Kant acredita na construção da paz perpétua, no respeito mútuo do imperativo categórico e na limitação do Estado pelo direito e pela ética, Hegel tende a absolutizar a razão do Estado, em nome da liberdade, como «fim da História», enquanto consumação de uma ideia dialética emancipadora, que muitos dos seus discípulos irão desenvolver diversamente. Tratava-se, no fundo, de procurar equilibrar a liberdade individual e a autoridade do Estado, tarefa difícil e hercúlea.


O ANTIGO REGIME E A REVOLUÇÃO
Alexis de Tocqueville é uma referência especial para Diogo Freitas do Amaral. Sente-se uma particular identificação (que partilho), a partir da ligação entre liberdade e igualdade e da procura de uma mediação durável (que Raymond Aron trouxe para a ribalta). Dá que pensar a afirmação: «A América representa na sua situação atual o mais estranho fenómeno: os homens surgem nela mais iguais pela sua fortuna e pela sua inteligência do que em qualquer país do mundo, ou em qualquer século da história que nos seja conhecida». A atualidade do pensamento de Tocqueville, fundador da Ciência Política, está no reconhecimento (semelhante ao do nosso Herculano) de «um fundo ético comum à “moralidade cristã” aceite pelos católicos e protestantes, e à “igualdade política e civil” preconizada pelos “philosophes” das Luzes e pelos políticos da esquerda liberal». E ao lermos Guizot (o homem do apelo burguês – «Enrichissez-vous!») ou Saint Simon, o apóstolo da tecnocracia socializante, somos convocados para a «questão social», a para o combate das injustiças gritantes da industrialização – Proudhon, Marx ou Bernstein, mas também Leão XIII. E chegaremos ao compromisso social-democrata do século XX (de Ernst Wigforss ou de Olof Palme), mas também à «economia social de mercado», à renovação da «doutrina social católica» (Maritain, João XXIII e Vaticano II). Repositório rico de referências, de reflexões e de informações, a «História do Pensamento» coloca a construção de democracia como uma tarefa exigente e sempre inacabada, centrada no pluralismo, na crítica e num sistema de valores ancorado na dignidade humana. Parafraseando Hans Jonas, há um princípio de responsabilidade a preservar em permanência.


Guilherme d’Oliveira Martins

Subscreva a nossa newsletter