A VIDA DOS LIVROS
de 16 a 22 de Janeiro de 2012
«História do Pensamento Político Ocidental», de Diogo Freitas do Amaral (DFA) (Almedina, 2011), preenche um vazio na literatura portuguesa, mas também se afirma no contexto internacional pela sua qualidade pedagógica e científica. Daí que a sua tradução seria muito útil, uma vez que a obra ombreia com as melhores que conheço sobre o tema. Estamos perante uma obra com elevado sentido pedagógico, servida por uma preocupação muito significativa com a construção de uma cultura de liberdade e de direitos humanos.
EDUCAÇÃO PARA A DEMOCRACIA
No pórtico do livro, o autor refere expressamente a sua preocupação com a Educação para Democracia («Education for Democracy») como um dos objetivos desta apresentação. Trata-se de uma referência da maior importância, uma vez que o aprofundamento da reflexão sobre o pensamento político constitui uma oportunidade indispensável para a apreensão da ideia de Democracia, não como um instrumento técnico de legitimação, mas como um sistema de valores. E quando lemos o discurso de homenagem aos mortos da Guerra do Peloponeso de Péricles, transcrito por Tucídides, encontramos elementos fundamentais que temos de ler em termos prospetivos – compreendendo a conceção exclusiva da cidadania ateniense, mas estendendo-a no longo caminho que conduziu ao entendimento inclusivo da democracia hoje. «O Estado entre nós é administrado no interesse do povo e não no de uma minoria». E é a partir de Péricles que podemos encontrar as regras de ouro da democracia: a liberdade, o debate parlamentar aberto e plural, a lei igual para todos. Afinal, o poder da palavra: «a palavra não prejudica a ação; o que é prejudicial é não se colher a informação pela palavra antes de se avançar para a ação». Aqui se encontram as regras fundamentais de uma sociedade aberta, plural, respeitadora, livre e responsável. Infelizmente, houve quem não ouvisse os alertas de Péricles, o que conduziu ao triste epílogo da Guerra do Peloponeso. Mas, como lembrava há dias Edgar Morin, nada disto teria sido possível na democracia ateniense se a pequena cidade não tivesse resistido, em termos improváveis, às ofensivas persas – o que permitiu a essa pequena luz bruxuleante chegar até nós a partir dessa magnífico século V (a.C.).
UMA LIÇÃO PARA SEMPRE
A lição desta obra é a de que o caminho difícil da democracia, ao longo dos séculos, foi sempre de avanços e recuos, exigindo a determinação e a recusa da indiferença, e aceitando a imperfeição como marca do reconhecimento da dignidade humana e das suas diferenças. Mas a história obriga a compreender que o confronto e o debate determinam a discussão das ideias. Xenofonte preferiu analisar o poder em vez de partir da cidadania. Admirou Esparta e preconizou o autoritarismo. Em lugar da mediação, preferiu a imposição – e este confronto (da cidadania e do poder) tornou-se crucial na evolução pendular das conceções políticas. Platão sobrepôs a realização da sociedade justa à felicidade individual. Mas o grande dilema entre o serviço do Estado e o interesse individual ficou por solucionar. Aristóteles, representado por Rafael (na capa do livro) a estender a mão sobre a realidade terrena, apostou na mediação e na mediania, «a lei é a razão sem apetite», enquanto o poder pessoal é o «domínio das paixões incontroláveis». É certo que com o Estagirita a dignidade humana era desvalorizada, mas o equilíbrio de poderes e a exigência da reflexão e do tempo surgem como condições de justiça. E quando, já na Grande Grécia, Marco Túlio Cícero defende o dever de participação política e a «humanitas», como aperfeiçoamento da «paideia» grega, sentimos o início da consideração da liberdade individual (libertas, de libra, a balança livre e equilibrada). «O homem honesto não é nunca surdo aos seus comandos e proibições». E recebemos os ecos de Antígona de Sófocles, quando a lei cega e cruel tem de se confrontar com a lei natural gravada no coração de cada um. Aliás, não por acaso, Montesquieu considerou Cícero como um dos maiores espíritos que jamais existiu – fazendo-se representar à romana. Poderíamos ainda falar de Marco Aurélio e de Séneca, mas a grande lição da Antiguidade Clássica é a dos equilíbrios e mediações.
LEMBRAR A IDADE MÉDIA
A Idade Média, tão debatida ao longo dos séculos, reserva-nos surpresas paradoxais. Se é verdade que o pensamento clássico só foi retomado e voltou a ser compreendido pelo diálogo entre as civilizações mediterrânicas, a verdade é que há uma nova síntese que se vai preparando e que culmina no Renascimento. Santo Agostinho herdou a influência de Platão, contrapondo a Cidade Celeste e a Cidade Terrena, o que vem das bases maniqueístas do Prelado de Hipona. A sua influência foi profunda e multifacetada – desde o primado da Graça ao impulso da Reforma Luterana. Como salienta Charles Taylor, é o individualismo que começa a germinar. Oito séculos depois, Tomás de Aquino, leitor atento de Aristóteles, irá tornar-se um incómodo renovador de ideias. O poder vem de Deus para o povo, e nasce um novo entendimento (diríamos moderno) da dignidade humana legitimadora do poder e da justiça, o que nos conduz ao direito resistência e até ao tiranicídio. Estamos diante da superação do Agostinianismo político e do lançamento da ideia de poder limitado e de soberania popular. Ainda no século XIII, Marsílio de Pádua lançará a primeira proposta de um Estado independente do papado. Sente-se a oposição entre guelfos (seguidores do Papa) e gibelinos (próceres do Imperador), num confronto muito complexo em que Dante era guelfo branco, a defender uma necessária distância entre os dois poderes.
ITÁLIA VEM À BAILA
E, ao falar de Itália, chegamos à Idade Moderna e a Maquiavel. DFA compreende bem o complexo papel desempenhado pelo autor de «O Príncipe». É a criação de um Estado moderno que está no horizonte. Há uma tensão entre a virtude e a fortuna – e talvez Maquiavel, em vez de escrever um livro técnico sobre o poder, tenha querido fazer ver aos seus leitores que tudo pode tornar-se falível perante a evolução das circunstâncias. O «Anti-Maquiavel», de 1740, de Frederico o Grande é um curioso revelador disso – num espelho em que a contestação e a apologia se tornam simétricos. Estamos perante a autonomização da política. E não terá Maquiavel (como Montesquieu) demonstrado que só o poder limita o poder? Não disse Jorge de Sena que Maquiavel é um «moralista, na mais alta e nobre aceção da palavra: aquele que descreve os costumes humanos, os resultados a que eles conduzem e as causas que os condicionam, com objetividade clínica»? «Se daí pode ser extraído, ou não, (insiste Sena) um conjunto de normas morais que sejam o bem-viver em sociedade, eis o que excede o seu pensamento». E Erasmo, amigo do nosso Damião de Góis, talvez não esteja assim tão longe de Maquiavel. É apaixonante o caminhar nesta peregrinação pelo pensamento da coisa pública. E Tomás Morus põe em confronto a utopia e a realidade, num sentido crítico que nos leva à importância das utopias e distopias. A partir deste ponto nasce a necessidade de analisar os «estados de natureza» contrapondo-lhes a ideia de «contrato social».
Guilherme d’Oliveira Martins