A VIDA DOS LIVROS
de 26 de Dezembro de 2011 a 1 de Janeiro de 2012
Como habitualmente publicamos o conto de Natal de 2011
«A livraria do convento estava silenciosa. O Natal aproximava-se. Frei António preparava, como habitualmente, um sermão. Naquela altura do ano não havia por ali amenidades de tempo, o Inverno era rigoroso, o frio e a humidade estavam em toda a parte. Para variar, na livraria sentia-se especialmente a intensidade do tempo invernoso. Felizmente, nos últimos dias, naquela cidade de Pádua, o sol espreitava entre as nuvens, o que dava uma maior luminosidade, que entrava pelas janelas. Contudo, o mês anterior tinha sido muito agreste – e, se é certo que a chuva agora dera tréguas, a verdade é que o frio viera sem pedir licença. Apesar de sempre muito ocupado, Frei António lembrava-se muitas vezes do tempo ameno da sua cidade de Lisboa, e de Coimbra, onde fizera toda a sua formação com os cónegos de Santa Cruz. Naquele momento dedicava-se a preparar os tópicos para o Sermão da missa do Galo. Começara por invocar as circunstâncias em que Maria e José se afadigavam para encontrar um lugar onde pudessem pernoitar. Mas faltava-lhe ainda o tema, que lhe permitisse reter a atenção dos fiéis, sendo-lhes útil espiritualmente. Estando nestas reflexões, entrou pela porta da livraria o pequeno Manuel, que muitas vezes o vinha visitar, sem que se soubesse exatamente de onde vinha. Em tempos, a criança dissera que vivia algures na proximidade do convento, mas, além do nome, ninguém sabia o que quer que fosse da sua vida ou identidade, apenas ele dissera um dia que tinha quatro anos, mas agora já deveria ir nos cinco. Todos se perguntavam porém sobre de onde viria, como viveria e para onde partiria, quando subitamente desaparecia apenas com um misterioso «Volto já», que tantas vezes se prolongava por muitos dias até que, de novo, aparecesse. Ninguém já se perguntava sobre o pequeno Manuel, que ora se entretinha a passear por entre os livros e as imagens que povoavam a livraria, ora se encarregava de fazer mil perguntas, sobre tudo, normalmente a Frei António. Uma vez mesmo a criança dera-se a fazer apreciações sobre uma velha imagem de S. José, dizendo – «Não está nada parecido». Mas que saberia ele disso? Dias havia em que o diálogo se prolongava, uma vez que o frade tinha vagar suficiente para corresponder às bizarras perguntas daquela criança de cabelos negros com caracóis. Outras vezes, Frei António pedia ao pequeno Manuel que o deixasse preparar em paz os sermões que tinha por encargo fazer, sob indicação de Frei Francisco. A verdade é que todos sabiam no convento que, nos dias em aparecia o pequeno Manuel, o sermão saía mais inspirado e não poucas vezes influenciado luminosamente pelos estranhos diálogos que se desenrolavam entre Frei António e a criança. Naquele dia, porém, Manuel estava especialmente irrequieto. Aparecera, como era hábito, sem se anunciar e sem que alguém soubesse quando chegara e de onde viera. Ao contrário do que era costume parecia mesmo apostado em motivar a desatenção de Frei António relativamente ao seu sermão. O pequeno chegou mesmo a dizer a Frei António que estava a fazer de propósito, uma vez que notara nos últimos tempos uma especial desatenção quanto à sua pessoa. Por momentos, Frei António julgou estar assaltado por uma fúria. Por um lado, precisava de acabar o sermão a tempo da missa do galo. Por outro, não podia aceitar que, contra todas as regras vigentes aquela misteriosa criatura o importunasse de forma tão excessiva. No entanto, lembrou-se de como lhe faziam bem aqueles diálogos improváveis com Manuel. Não tinha explicação para o facto, mas era indubitável a serenidade que sentia ao falar com ele. Perante essa recordação Frei António procurou regressar ao trabalho e à sua tentativa de fazer, nas suas ideias mestras, o sermão natalício. Acontece, contudo, que continuava a faltar-lhe o tema. Era muito pouco recordar aquela noite de Belém, o édito de César Augusto para o recenseamento, a procura de uma estalagem, o desencontro, as portas fechadas. Tantos corações desatentos… Frei António esquecera-se de Manuel e, de súbito, notou que a criança subira para a banca em que tentava escrever de pé e estava sentada à sua frente num equilíbrio muito instável. É verdade, lembrou-se Frei António que, noutras ocasiões, Manuel fizera bizarros exercícios em que parecia quase suspenso, sem quaisquer apoios. Estranhamente, agora como noutros momentos, apesar de desafiar as leis do equilíbrio, não parecia instável. De novo o frade teve de suster o seu ímpeto. Então não queriam ver que aquela criança queria mesmo distraí-lo e tirá-lo das suas obrigações? Era de mais – sobretudo porque agora o pequeno começara a cantar, com uma voz naturalmente infantil, mas muito bela e segura. Então vários dos frades que estavam na proximidade, acorreram com a curiosidade de desejarem ver aquela estranha visita. Nessas vindas periódicas era a primeira vez que tal acontecia. Noutras, a criança fazia perguntas, tantas vezes sobre trivialidades (sobre quem eram os copistas e os autores das iluminuras que enchiam a livraria, sobre quem eram os jardineiros e como escolhiam as árvores e as plantas dos jardins, sobre a razão de ser dos hábitos dos frades menores, sobre o significado e modo de fazer os nós da corda que cingia o hábito). Outras vezes, fazia perguntas inesperadas, que Frei António tinha muita dificuldade em responder (como era isso de medir o tempo e como era possível não chegar atrasado aos compromissos)… Manuel era uma criança especial, os seus olhos eram penetrantes de atenção, as suas palavras eram por vezes aparentemente inseguras, mas encerravam um especial cuidado e rigor. Frei António naquela circunstância não tinha, porém, tempo a perder – e não o escondeu: «Agora não posso atender. Por favor, escolha outro dia; porque agora preciso de acabar este sermão, uma vez que tenho uma missão importante a cumprir». Noutro dia, talvez o pequeno Manuel se tivesse esgueirado, num dos seus desaparecimentos inusitados, mas não, ficou por ali, com se Frei António nada lhe tivesse dito. Depois de cantar, entrou em mais uma longa série de perguntas, cada uma mais trivial do que a anterior – «Frei António, como se protege do frio? Frei António, já pensou se abriria a porta do convento quando batessem à porta Maria e José?». «Frei António, por que razão não me dá atenção?». Mas Frei António pediu, uma vez derradeira, que precisava de terminar o exercício que estava a tornar-se tão difícil. Ainda não passara das ideias gerais e tinha de fazer a pregação. Nada, todavia, parecia demover o pequeno Manuel. Ele ali continuava irrequieto, capaz de encontrar os mais ínfimos pormenores em tudo o que o rodeava e para que olhava. Nenhum pormenor lhe escapava. Agora, a criança subira a uma das estantes mais altas. Ninguém ousava dizer ou fazer alguma coisa, para o impedir. Todos estavam estupefactos, nunca aquilo acontecera. Frei António esperava, sem poder acrescentar uma linha ao que já escrevera, pois não tinha atenção possível. Foi então, que o frade começou a perceber que algo de muito importante se estaria a passar. E lembrou-se da pergunta insistente de Manuel sobre a falta de atenção relativamente a ele… Entretanto, Manuel deu um pequeno salto e colocou-se mesmo ao lado do frade. Frei António não resistiu e disse ao jovem visitante: «Tenho de fazer o sermão de Natal, pois sem ele não posso cuidar das almas destes fiéis que esperam pela minha palavra». De um modo firme e enigmático, a resposta não se fez esperar. O menino olhou fixamente os olhos de Frei António e disse-lhe: «Esse é o pior argumento sobre falta de tempo, pois sobre as almas sou eu que cuido, e continuo por aqui». Frei António caiu em si, e compreendeu. Então, como de costume, ouviu-se o rápido «Volto já» e o pequeno Manuel desapareceu. E consta que nesse dia o sermão de Frei António foi mais eloquente e inspirado de sempre e versou sobre a desatenção, a indiferença e a necessidade de não nos distrairmos do essencial da vida, ou seja, dos pequenos pormenores…».
Guilherme d’Oliveira Martins