A VIDA DOS LIVROS
de 28 de Novembro a 4 de Dezembro de 2011
«Tiago Veiga – Uma Biografia» de Mário Cláudio (D. Quixote, 2011) é um livro singularíssimo em que tudo se encontra: a tragédia, o drama, a ironia, a ilusão, a realidade, pessoas e fantasmas… Deparamo-nos com a sociedade portuguesa, nas suas forças e fraquezas, uma vez que Tiago Manuel dos Anjos, aliás, Tiago Veiga é uma personagem inclassificável e inesperada, que parece vocacionada para se encontrar com o mundo, mas que, no entanto, acumula desencontros. Estamos, no fundo, diante de um apelo crítico sobre Portugal… Daí ser um livro de leitura indispensável.
Revista «Ler».
UM PONTO DE PARTIDA
A história conta-se em poucas palavras, mas a obra é necessariamente extensa e rica, uma vez que está em causa a vida de uma pessoa complexa, difícil e razoavelmente digna de atenção. Não se trata, pois, de uma pessoa qualquer. Tiago Veiga (1900-1988) é alguém até há pouco praticamente desconhecida do público. Agora, graças a Mário Cláudio, passou para a ribalta, apesar de ter uma obra escassa, em virtude da teia riquíssima e improvável de relações que se encontram, a partir da sua existência e da sua personalidade. «Quem quer que se atreva à escrita de uma biografia pouco favorecida pela notoriedade, e sobre a qual quase nada se sabe, sujeita-se a enfrentar um enredo de perplexidades» (diz-nos o autor da biografia). «À fantasia para que sempre tende qualquer relato de uma vida, seja a de um famoso de todo o tempo e espaço, seja a de um desconhecido de um país castigado pela indiferença do mundo, acresce a tentação de colmatar as inúmeras lacunas com as suposições ao alcance, procedendo-se à leitura dos dados disponíveis a uma luz capaz de os tornar significantes da sua escassez». Ora, tudo isto está presente nesta invocação pormenorizada, rigorosa, ponderada, servida por testemunhos insuspeitos e de um aparato de notas digno de respeito. José Carlos Seabra Pereira já nos tinha dito: «De facto, o que sabemos da biografia cultural de Tiago Veiga, dos interesses da sua inteligência e da formação do seu gosto, tem pontos de contacto com o perfil e o trajeto de Fernando Pessoa e das suas tão variadas relações literárias». Tiago Veiga é o símbolo da criação intelectual. Que é a vida senão uma relação íntima e inesgotável entre a ficção e a realidade? Que é a existência senão um diálogo entre o provável e o improvável? Que é a cultura senão a busca, sem descanso, do significado das sombras projetadas nos tapetes? Veiga foi um fidalgo vago, do Alto Minho, com uma vida quase etérea, e uma presença misteriosa. «Apesar de se ter manifestado quase sempre refratário à publicação dos seus escritos, e mais ou menos arredio dos movimentos da chamada “vida literária”, não falta quem comece a saudar em Tiago Veiga a incontestável originalidade de uma voz, e o poderio impressionante que lhe assiste».
POETA, DIFÍCIL DE DEFINIR
Como poeta é muito difícil de definir, o que não impediu o autor da biografia de dizer nos idos de 1988, nas colunas do semanário «Tempo» que Veiga foi uma «voz originalíssima da poesia portuguesa de Novecentos». Em 2003, graças ao labor de Mário Cláudio, saíram os «Sonetos Italianos», em 2008 foi dado à estampa o pequeno conto infantil «Gondelim» e, em 2010, pudemos ler «Do Espelho de Vénus». Tiago Manuel dos Anjos ou Tiago Veiga (nascido no Brasil, em Irajá, e não em Castro Laboreiro, como julgou primeiro o biógrafo) é um inesperado bisneto de Camilo Castelo Branco, neto de Nuno e Berta Maria dos Anjos, e filho de Inácio Manuel dos Anjos e da irlandesa Mary Leonard O’Heary… É a vida de Tiago que motiva estas exaustivas oitocentas páginas da autoria do fiel biógrafo e confidente, Mário Cláudio. O suicídio da mãe, testemunhado por Tiago, que brinca com o sapato caído do pé da enforcada, é uma referência tétrica que marca a narrativa. O romance e a realidade entrelaçam-se em cada momento. A ficção ocupa o espaço concreto do tempo, e estamos diante de um mosaico artificioso e compreensivo sobre o século XX português, e não só. Pode, de facto, dizer-se que Tiago Veiga é o símbolo da ambiguidade portuguesa de quase um século. A personagem fundamental do livro é tanto mais significativa, quanto é certo que nunca quis ser notada, notável ou célebre. E deste modo passou pelo século, revelando o que se foi apercebendo do mundo que se desenvolvia em volta, sem ser perturbado ou manchado pelos acontecimentos. Secretariou Bernardino Machado (considerando as raízes familiares de Paredes de Coura), conheceu Teixeira Gomes, o esteta cosmopolita, o cidadão que Tiago considerou pouco compreensível, colaborou com António Ferro, mas teve reservas perante o excesso da sua personalidade («idólatra sem conta e medida»).
O PESO DE UMA LENDA
Sobre a relação com o autor de “Mensagem”, temos a registar uma lenda: «a dignidade de “super-Camões” que se afirmava haver sido concedida por Fernando Pessoa a Tiago Veiga, e que fora perfilhada, um pouco a sério, um pouco a brincar, pelos amigos mais chegados ao poeta, e sobretudo por aqueles que o acompanhariam no fim, não encontra no espólio pessoano, nem em qualquer outro lugar palpável, a mínima expressão, sobrevoando todavia os anos terminais do nosso biografado como um desses mitos em que tão fértil se mostra a história literária». W. B. Yeats, os irmãos Sitwell, Cocteau, Bárbara Hutton, Benedetto Croce, Marianne Moore são personalidades com quem se cruza e tantas vezes se desencontra. José Régio, Ruy Cinatti ou Luís Miguel Nava são outras referências significativas, para entender a complexa personalidade de Tiago. ENCONTRO COM PASCOAES. – Mas Teixeira de Pascoaes merece referência especial, num episódio que ilustra bem o que é esta biografia cheia de pormenores sobre os diálogos literários: «Pascoaes abriu então a pasta que trazia de imitação de cabedal, e da raça das que costumavam utilizar os cobradores de água e eletricidade, retirou dela um quadro que representava Lúcifer num fundo crepuscular e declarou, “Aqui tem você o seu S. Miguel de Portugal, transforme-o naquilo que lhe apetecer, mas imploro-lhe que não o ponha de fato-macaco a lidar com uma caldeira gigantesca”. Colocou ele a pintura sobre a mesa, e apressou-se a sair, tacitamente encarregando o seu ex-interlocutor de pagar os cafés bebidos». O cenário era uma esplanada no Porto, lá para a Cordoaria, e a ocasião a da escrita de «Triunfo e Glória do Arcanjo São Miguel de Portugal», sobre o qual se gerou uma lenda ilusória, que envolvia T. S. Eliot, a propósito da qualidade superlativa do poema… Os grandes temas do romance são o do encontro e desencontro, do anonimato, da distância, e da capacidade de estar e de se aproximar, sem ser mais do que a testemunha, que não tem plena consciência da importância de cada figura ou acontecimento, porque participa sem participar. A começar pelo seu estranho nome, sobretudo para quem nasceu no último ano do século XIX, a figura de Tiago (talvez James, por influência da mãe) corresponde a um enigma permanente que o romancista vai desvendando e ocultando. De facto, da primeira à última linha, este exercício tem uma ambivalência inteligente e talentosamente urdida, na qual nunca há uma revelação plena. Estamos perante um extraordinário jogo literário, em que tudo poderia ter acontecido, uma vez que a parte mais importante do romance aconteceu verdadeiramente no testemunho de Mário Cláudio. Poeta inédito e virtual? Personalidade etérea ou autêntica? Uma coisa é certa, Tiago Veiga existe hoje, sem sombra de dúvida, como literatura e como encontro histórico com a cultura portuguesa do século XX (e as suas vicissitudes). Não importa que o poeta seja uma sombra, sem obra significativa. É de propósito que tal acontece. Se a escrita ou a vida de Veiga tivesse sido marcante, decerto não teria passado despercebido. Assim, Mário Cláudio sentiu necessidade de o inventar e reinventar. E não será uma biografia sempre um exercício de ficção?
Guilherme d’Oliveira Martins