Quando iniciámos este folhetim, invocámos Ruben A., como eterno fazedor de fantasmas. “A Torre da Barbela” é o melhor romance português sobre fantasmas. Falemos, pois, do seu Autor. “Sedutor fascinante de inteligência e sensibilidade”, chamou-lhe Mário Soares. Em bom rigor, a biografia de Ruben Andresen Leitão é digna de Galsworthy. E a sua lógica, um exercício de G. K. Chesterton. Sophia de Mello Breyner Andresen, sua prima direita, recorda o Porto, o Campo Alegre, esse lugar olímpico, com uma inefável ternura: “para uma criança, aquela casa e aquele enorme jardim com os altíssimos plátanos, as tílias, o carvalho, ao lado do ténis, as camélias, o roseiral, o pomar, as adegas, o pinhal, os morangos selvagens, eram um mundo, um reino que em nós permanece como uma inesgotável memória inspiradora”. E essa saga da Quinta do Campo Alegre, porque nitidamente romanesca, teve também o dramático de um tiro de pistolão, do fio de armas de fogo mandado instalar por Dona Joana Andresen contra os ladrões, que atingiu o irrequieto Rubinho, deixando-o no território incerto dos mártires. Até que, em março de 1937, faleceu a coluna dorsal daquele mundo, a avó Joana, a “Velha Máquina”, que deixou a Ruben, como testamento, a “ânsia desmedida de partir, de romper horizontes”.
Ruben é o “sportsman”, a promessa do golfe e do “lawn-tennis”, que recorda as lições de Adolfo Casais Monteiro. Nas vésperas da Guerra, o jovem incrédulo, em viagem pelo território do drama, pergunta-se: “Guerra?! Pensava eu: que coisa estranha! Guerra? Este mundo quer a Guerra? Para que é que servem os homens inteligentes?”. A verdade é que tudo se precipitaria. Agostinho da Silva, o sábio visionário, torna-se grande referência para Ruben… “Trazia livros, deixava-os ficar, como quem deixa ficar maço de cigarros para tentar o vício”… E o vício entrou. Um dia, da boca de Manuel Torre do Valle, “o mais notável tipo da minha geração”, ouve dois poemas de Fernando Pessoa, publicados na “Presença”, e rende-se a quem passa a considerar como o maior poeta português. E descobre Proust. Novo deslumbramento. Ruben faz admissão a Direito e a Letras. Ao saber da entrada no Convento de Jesus, não tem dúvidas, fica em Histórico-Filosóficas. Mas aí sofrerá o julgamento absurdo de um tal Matos Romão, lente de Psicologia, que o obriga a rumar a Coimbra. “Lisboa fica de luto sem o Rubirosa” e os amigos oferecem-lhe um jantar de despedida nos “Anarquistas”… Torre do Valle está na sombra, mas não aparece. É esse o tempo das grandes leituras (“Eça de fio a pavio, através do António Seabra”), mas sobretudo o do grande arrebatamento pelos modernistas – Rimbaud, Éluard, Sá-Carneiro, Almada… Em Coimbra, funda a primeira República supra-realista em homenagem a Dali, “Babaou – une maison surréaliste”.
Tem uma curiosidade intelectual insaciável. Termina o curso. Em Pascal procura “desvendar a luz no campo das trevas” – porque “quando encontramos as ‘razões do coração’ podemos ter a certeza que dentro de nós qualquer coisa existe que nos transcende”. Começa como professor de francês. Ensina, entusiasma os alunos, lê e sonha. Mas vem-lhe a vontade de emigrar. “Emigrava com a saudade de um país geograficamente encantador, inveja dos estrangeiros, mas que à escala humana só com uma lente é possível desvendar a inteligência das coisas, do milagre”. A Inglaterra, com que se relaciona, está destruída pela guerra. No King’s College conhece Charles Boxer, de quem se torna amigo. O entusiasmo e a sua cultura causam deslumbramento. De Fernão Lopes a Fernando Pessoa, passando pela Geração de 70, Ruben reflete sobre o destino de Portugal… Entretanto, morrera Manuel Torre do Valle, vítima de difteria, na flor da idade e no auge da esperança. É uma perda irreparável. Nas margens do Tamisa, cultiva o inglês, adapta-se ao frio, mata saudades da Pátria, indo buscar ao Aeroporto o seu primo Ruy Leitão e Menez num esplendoroso Rolls-Royce alugado. D. Pedro V serve-lhe de pretexto para frequentar o Castelo de Windsor. Em cada dia que passava mais admirava o reformador-tipo, o nosso primeiro moderno. Ouviam-se as suas “Peregrinações Inglesas” na BBC. Visita Ruy e Menez em Washington, lê Dickens, Dostoievski e Eça, nas margens do Potomac e cada vez mais se convence de que Shakespeare é o primeiríssimo surrealista. Por coincidência, encontra-se com T.S. Eliot… Em 1949, nasce o nome Ruben A., com o primeiro volume das “Páginas” da Coimbra Editora. Mas o segundo volume (1950), caído nas mãos do ditador, vai determinar a ordem para regressar… Para Salazar, “o livro, ou é de um louco ou de um sujeito que, tendo dinheiro para pagar um livro de dislates, se propôs rir-se de todos nós”. Os amigos, os colegas ingleses, a gente de bem mexe-se. O ditador retrocede: “o maluco do homem tem habilidade e competência para o cargo”. E fica. Mas o mal estava feito. Ruben parte em 1952: “restava-me arrumar as malas, despedir-me. (…) Paga-se muito caro por ter ideias”.
Ruben vê-se desempregado. Refugia-se na Embaixada do Brasil, na publicação “Artes e Letras”, que coincide com a renovação de Juscelino Kubitschek e com o período rico de abertura e de pujança democrática. O Brasil contemporâneo de Guimarães Rosa é o grande repositório da cultura da língua. Em 1954 sai o “Caranguejo”, de que Eduardo Lourenço dirá: “não foi nada senão bicho insólito, entrando às arrecuas e aos pinos na policiada praia lusitana”. Tem uma paixão forte pelo património cultural português. António Quadros chamar-lhe-á por brincadeira Dr. Jeckyl e Mr. Hyde, o médico e o monstro – “mas a verdade é que me acuso por ter descurado completamente o Dr. Jeckyl, em exclusivo favor dos imaginosos textos impressionistas, memorialistas ou romanescos do Mr. Hyde, o Monstro, cuja leitura, além de tudo o mais, era divertidíssima”.
Escreve das melhores memórias autobiográficas da nossa literatura – “O Mundo à Minha Procura”. E nasce “A Torre da Barbela” – romance do absurdo genial nascido em Esteiró.”A família Barbela identifica-se com a história de Portugal, com os oito séculos da história de Portugal. Os homens mais notáveis do meu romance (confessa o autor) têm, como os da história de Portugal, as suas estátuas. O que dou eu aos Barbelas? Vida. De noite estão vivos, como qualquer de nós, têm os mesmos problemas e mais um, este irremediável: sabem que vão morrer ao nascer do Sol”. Ruben tinha horror à mediocridade. No dizer de Pina Martins, severo julgador, tinha “entusiasmo por coisas novas”, insistindo em “rasgar horizontes”.