A Vida dos Livros

A VIDA DOS LIVROS

Na nossa já épica viagem a Malaca e às Molucas, ao chegar a Ternate, e depois em Tidore, tivemos a evidente sensação de encontrar Luís de Camões, no Canto X de «Os Lusíadas». Lá estavam os cumes ferventes, as reminiscências das flamas ondeadas, as árvores do cravo ardente, além da noz-moscada… Foi como se Camões aqui tivesse estado, ficando a prova do rigor posto pelo poeta nesta sua obra-prima tão mal cuidada por todos nós. E a completar essas rigorosas referências, a alusão a uma velha lenda destas ilhas. «Aqui há as áureas aves, que não decem / Nunca à terra e só mortas aparecem». Contaram-nos, de facto, em Ternate que havia o velho hábito de cortar as patas a certo tipo de aves para recordar essas míticas «aves de prata» que não desceriam à terra senão mortas…

A VIDA DOS LIVROS
de 7 a 13 de Novembro de 2011



Na nossa já épica viagem a Malaca e às Molucas, ao chegar a Ternate, e depois em Tidore, tivemos a evidente sensação de encontrar Luís de Camões, no Canto X de «Os Lusíadas». Lá estavam os cumes ferventes, as reminiscências das flamas ondeadas, as árvores do cravo ardente, além da noz-moscada… Foi como se Camões aqui tivesse estado, ficando a prova do rigor posto pelo poeta nesta sua obra-prima tão mal cuidada por todos nós. E a completar essas rigorosas referências, a alusão a uma velha lenda destas ilhas. «Aqui há as áureas aves, que não decem / Nunca à terra e só mortas aparecem». Contaram-nos, de facto, em Ternate que havia o velho hábito de cortar as patas a certo tipo de aves para recordar essas míticas «aves de prata» que não desceriam à terra senão mortas…


 


«OLHA CÁ PELOS MARES DO ORIENTE»
Duas lanchas rápidas levam-nos, com o fresco da manhã, de Ternate para Tidore. A viagem entre as duas ilhas é curta. Ao olharmos para Ternate percebemos a sua origem vulcânica pelos fumos muito ténues que vêm das entranhas da terra. «Olha cá pelos mares do Oriente / As infinitas ilhas espalhadas: / Vê Tidore e Ternate, co fervente / Cume, que lança as flamas ondeadas. / As árvores verás do cravo ardente, / co sangue português inda compreendidas». É Camões quem no-lo diz, no canto X de «Os Lusíadas», onde descreve com pormenor este limite oriental da divisão de Tordesilhas. O Dr. Mudaffar Sjah, Sultão de Ternate, recebeu-nos de braços e alma abertos, fazendo questão de lembrar que é bem-vinda a presença antiga dos portugueses nestas paragens, em nome de uma longa tradição (cheia de incertezas e vicissitudes) de entendimento, por isso falamos do diálogo entre culturas e religiões e no projeto da UNESCO da cultura da paz. Em seguida, vemos o tesouro, em especial a coroa, sobre que há muitas lendas, e cuja idade se perde na noite dos tempos. A verdade é que os sultões de Ternate e Tidore ganharam poder através dos portugueses, que para aqui trouxeram a prosperidade das especiarias, com o comércio da noz-moscada e do cravinho. E Fernão de Magalhães veio a Maluco pelo ocidente com base nas informações provindas de Ternate. Percebemos, pois, que as Molucas tiveram uma importância (mercantil e missionária) imensa. Malaca enquanto centro nevrálgico fez chegar aqui a sua influência, como bem vimos, antes de chegar aqui, vindos de Amboino, na antiga cidade cosmopolita de Makassar, nas Celebes, onde os portugueses pontificaram e coexistiam chineses, árabes, siameses, javaneses e malaios.  


A MAGIA DE TIDORE
Em chegando a Tidore, fomos surpreendidos por uma luzida receção com danças tradicionais oferecida pela municipalidade. Sentimos a genuína generosidade de quem faz questão de repetir que há boas recordações ancestrais dos portugueses. Apesar de insistirmos em que é hoje e o futuro que nos importa, percebemos que a História antiga não foi esquecida. Depois das boas-vindas, visitamos o memorial dedicado a Sebastião d’Elcano, que substituiu Fernão de Magalhães no comando da circum-navegação, depois de o português ter sido morto nas Filipinas. O memorial está no Forte de S. José del Cobo, e Luís Filipe Thomaz recorda o Tratado de Saragoça de 1529, segundo o qual as Molucas foram confirmadas na zona de influência portuguesa e as Filipinas na castelhana. Os portugueses pagaram então 300 mil cruzados ouro, valor que foi incluído no dote de D. Isabel de Portugal (de quem fala o poema de Sophia sobre o Duque de Gândia), aquando do seu casamento com Carlos I de Espanha, V de Áustria. As fabulosas Ilhas de Especiarias caberiam ao rei de Portugal, por aqui terem efetiva inserção os mercadores e os missionários portugueses. As relações entre os sultões de Ternate e Tidore foram sempre atribuladas, e em virtude disso portugueses e espanhóis se digladiaram (e também se completaram), para beneficiarem da abundante produção das matérias-primas. Encontramos os portugueses em Ternate até 1575, saindo depois do ato tresloucado de João Silva Pereira, o sobrinho do capitão português, que matou o sultão Hairun. Ora em Ternate, ora em Tidore, numa alternância pendular, portugueses e castelhanos exerceram influência até 1665. Regressámos a Ternate por volta de 1605, mantendo-nos até 1663 numa situação de partilha luso-espanhola, altura em que os holandeses passaram a dominar através da Companhia das Índias Orientais (VOC). Os fortes de Santiago dos Cavaleiros e dos Reis Magos são marcos da presença ibérica, como em Ternate o forte de S. João Baptista. O sultão de Tidore, Djafar Sjah, um ancião sereno e afável, no seu novo palácio, pede-nos que não esqueçamos o importante património histórico deixado desse tempo antigo.


AS FOTOGRAFIAS EXTRAORDINÁRIAS DO BATÁVIA
Chegados a Jacarta, vindos de Ternate, procuramos aproveitar o pouco tempo que temos da melhor maneira. No Museu Nacional percebemos a influência em Java dos mercadores hindus, bem evidente na prolífera estatuária que nos permite entender como o sincretismo religioso da Índia se pode adaptar a regiões bem diferentes daquelas onde se desenvolveu, apesar das dificuldades que um sistema de castas levanta a qualquer expansão marítima. É muito problemático encontrar um modo eficaz de compatibilizar a vida quotidiana de uma comunidade embarcada com a rígida diferenciação das castas. Como ter refeições diferenciadas? Como encontrar lugares diferentes para estar ou pernoitar? De qualquer modo, a expansão do hinduísmo para as ilhas do sul foi um facto, como verificámos em Bali. As soluções foram, afinal, encontradas. Além da estatuária e da simbologia hindu, encontramos as referências etnográficas sobre o povoamento e as habitações indonésias. Satisfazemos, por fim, a nossa curiosidade ao vermos os padrões portugueses com as armas do rei D. Manuel, que aqui se encontram, mesmo sem sabermos ao certo de onde provêm. No Café Batavia, onde se invoca e sente o ambiente colonial holandês (lembremo-nos de que o desenvolvimento de Jacarta se fez a partir da decadência de Malaca), reencontramos o encarregado de negócios de Portugal, Pedro Coelho, e temos a agradável oportunidade de contactar com elementos proeminentes da comunidade tugu. São descendentes de portugueses ou de falantes da nossa antiga língua franca vindos de Malaca, Cochim e Ceilão, cuja identidade continua marcada pelo «papiar kristang». Falam-nos com entusiasmo das suas músicas e tradições, dos seus espetáculos e da sua ligação ancestral à cultura portuguesa. Sentimos alegria e entusiasmo e há um fervilhar de ideias. Testemunham este encontro singular as paredes silenciosas do Café, repletas de fotografias extraordinárias da autoria dos melhores autores (como Man Ray e Karsh), invocando artistas, escritores e as glórias dos anos de ouro do cinema.


OS IRMÃOS DA COMUNIDADE DE TUGU
Rapidamente passamos em revista mentalmente a sucessão de lugares, experiências e pessoas dos últimos dias – e com os amigos de Tugu percebemos que, se é verdade que há muito não falam ou ouvem o português, a verdade é que nas festas populares é a reminiscência da nossa língua que faz a diferença. Cada vez menos pessoas falam o português herdado do século XVI, mas notamos uma enorme vontade de preservação dessa memória, pela aprendizagem da língua contemporânea e pelo estudo e renovação das modas tradicionais. Uma jovem, de olhar vivo, confidenciou-nos, com legítimo e incontido orgulho, que está a aprender português contemporâneo. Naquele momento, voltámos a lembrar Tidore, as águas cálidas e vulcânicas, o fantástico banho de mar do dia anterior, a hospitalidade inexcedível. Quando deixámos Jacarta, a caminho de Singapura e nos despedimos dos irmãos de Tugu, ficou a promessa de que não esqueceremos as suas canções e o seu profundo e sentido apego à nossa antiga língua comum partilhada há quatro séculos.


Guilherme d’Oliveira Martins


Fotografia: Helena Serra

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