O Folhetim de Verão de 2023 está a chegar ao fim. A grande heroína do ano está a ser Carolina Michaelis de Vasconcelos com milhares de gostos e sobretudo o fantástico reconhecimento da sua importância. É uma justíssima homenagem às mulheres. E Joaninha dos olhos verdes está na memória de todos. Mas há fantasmas que ainda estão na fila para entrar. E a verdade é que até ao dia 31 de agosto ainda muito vai acontecer. Já falámos de Cabo Verde e da “Claridade”, mas da Macaronésia ainda fica algo para acrescentar. Vitorino Nemésio foi acarinhado por todos, mas o Atlântico, que esteve logo na letra A não pode ser esquecido.
Hoje, voltamos às ilhas. Germano Almeida é o biógrafo de Cabo Verde. Não podemos compreender a vitalidade cultural do arquipélago e do país sem ler hoje o autor de Do Monte Cara vê-se o Mundo. É verdade que Baltazar Lopes é uma espécie de patriarca da “caboverdianidade” ou que Corsino Fortes é um poeta que sente como ninguém a identidade dessa extraordinária cultura da Macaronésia do Sul, mas Germano busca a naturalidade, a alegria de viver, a ironia, a arte de contar, a diversidade de tipos populares e a sensualidade dos corpos e das relações humanas. Não esqueço o dia que nos encontrámos na Praia, numa iniciativa do Centro Nacional de Cultura, e falámos dum tempo que estava para vir, em que de um modo natural a literatura cabo-verdiana seria reconhecida como exemplo maior na diversidade da língua portuguesa. Esse tempo chegou primeiro com o reconhecimento de Arménio Vieira no Prémio Camões e depois com o próprio Germano Almeida. A vitalidade cultural de Cabo Verde augurava essa evolução como natural. Desde O Testamento do Sr. Napomuceno da Silva Araújo não há qualquer dúvida sobre a qualidade excecional da obra e do autor. E em imaginação, percorremos o caminho iniciático do protagonista. “Atravessou a Rua de Lisboa, o Largo do Palácio e subiu ao Forte de Cónego trotando atrás de Jovita e extasiando-se com a maravilha que era o Mindelo, nunca vira tanta gente junta e sentia-se envergonhado de estar descalço atrás daquela carregadeira que calçava sandálias de plástico. Naquele dia não saiu de casa, temeroso de se perder na cidade enorme ou ser atacado por bandidos que sabia existirem e perseguirem as pessoas de dia ou de noite…”.
Ah, o Mindelo, cidade de história conturbada que Germano Almeida aprendeu a conhecer de trás para a frente. S. Vicente foi povoada tardiamente. Tempo houve em que os piratas usavam a baía do Porto Grande como local de descanso, antes de avançarem para temíveis investidas. O povoamento foi lento, vindo de Santo Antão e S. Nicolau. E foi a memória da gloriosa revolução liberal, em que Garrett e Herculano estavam entre os bravos de Pampelido, que deu o nome à extraordinária cidade que o escritor ama. Aqui acabou a escravatura. E essa invocação do Mindelo mítico é o melhor elogio da liberdade, como recusa a subalternização ou menoridade. E assim se tornou centro de irradiação de uma especial riqueza cultural que aproveitou as potencialidades do entreposto mercantil. Em Do Monte Cara vê-se o Mundo a personagem viva é a própria cidade do Mindelo e a sua gente. O velho Pepe é o cicerone, funcionando como um verdadeiro revelador e encenador de tudo o que vai acontecer. Júlia, Guida, D. Aurora, a Professora Ângela, o Trampinha – todos ilustram uma realidade humana muito rica, com uma ironia inesquecível, sob o olhar divertido e sábio do Monte Cara, em frente à cidade. E eis-nos embrenhados no dédalo que conduz ao Fortim d’El-Rei, à Alfândega Velha ou a Praça Nova, vibrante ao som do funaná. Aqui Nhô Baltas, Manuel Lopes e Jorge Barbosa criaram a “Claridade” – onde Chiquinho começou a ser publicado, com a originalidade cabo-verdiana, “excluindo os portugueses de toda e qualquer discussão referente ao destino das ilhas e dos homens”, como disse Alfredo Margarido.
O percurso de Germano Almeida começou na ilha da Boa Vista, onde aprendeu a viver entre a ruralidade e a cultura urbana. Em Regresso ao Paraíso disse que “da Boa Vista da minha infância pouco mais já resta que o prazer de usar o tempo. É uma noção do tempo em que o hoje e o amanhã, o agora e o mais daqui a bocado, continuam significando a mesmíssima coisa. E quando para lá ia de férias ia sobretudo em busca desse tempo sem relógio, que é nosso está por nossa conta”. O futuro escritor fez a tropa em Angola, numa zona de confronto. Com vinte cinco anos, graças às qualidades da sua escrita consegue uma providencial bolsa da Fundação Calouste Gulbenkian que lhe permitiu estudar Direito em Lisboa. Em 1977 regressa à pátria e em 1983 funda com Leão Lopes e Rui Figueiredo a revista “Ponto e Vírgula” – onde publicou contos com o pseudónimo de Romualdo Cruz… Seguiu-se uma entrada natural no mundo literário, com obras reveladoras duma originalíssima maneira de usar a língua portuguesa de Cabo Verde, na tradição dos seus melhores compatriotas. A Ilha Fantástica é constituída por um conjunto de textos, saídos na revista “Ponto e Vírgula”, essenciais para a compreensão de uma cultura, onde o picaresco se associa à apetência de compreender e revelar sentimentos. O Fiel Defunto – confirmou a capacidade para privilegiar a ideia do “divertimento” com as pequenas coisas… E alguém pergunta ao “fiel defunto”: “mas deves estar a fazer alguma coisa para assim te divertires durante tanto tempo”. “Sim, respondia galhofeiro, ouço música, navego na internet, espreito o facebook, onde aprendo muito sobre as pessoas em geral e as pequenas vaidades que lhes enchem a alma, leio livros, falo com amigos, faço má-língua, digo mal das criaturas de quem não gosto, cuido das plantas do meu jardim que nunca estiveram tão bonitas de tão bem tratadas” … E assim se confessa imune aos vícios, incapaz de escrever o que não tem para dizer e apenas disponível para deixar passar o tempo, com uma cana de pesca na mão, “sem sequer desejar apanhar um peixe para não ter a maçada de o transportar para casa” … quanto à língua portuguesa, Germano diz ser indispensável um ensino rigoroso do crioulo e o português deve ser muito bem aprendido como língua segunda. A alfabetização em crioulo obriga a cuidados especiais, para evitar barreiras entre ilhas ou comunidades. E é fundamental que o português não seja sentido como língua estranha. Daí Germano Almeida insistir “na necessidade de nós em Cabo Verde dominarmos o português até mais que os portugueses. Com o crioulo não vamos longe, não saímos das ilhas. Com o português vamos a toda a parte”.