O Yéti corresponde a uma figura, entre o mítico e o real, que representa o “Abominável Homem das Neves”, celebrizado, designadamente, por Hergé em “Tintin au Tibet”, estando presente em diversas culturas, para além dos Himalaias, principalmente em lugares extremamente hostis e montanhosos. O Yéti tornou-se na cultura mundial uma homenagem ao diálogo entre a humanidade e a natureza. Investigadores, conscientes do pouco que se conhece sobre a matéria, sugerem a hipótese de o Yéti ter o estranho costume de acasalar com seres de outras espécies, até os humanos, deixando descendentes por todo o mundo com características muito parecidas com as suas, adaptadas ao clima local. Neste Folhetim de Verão falamos de algo muito pouco conhecido, ou seja, dos primeiros portugueses a demandar o Tibete. E se falamos de portugueses é porque eles foram, sem dúvida, os primeiros europeus nessa aventurosa demanda. O Tibete, região quase mítica, o teto do mundo, manteve-se desconhecida dos europeus até ao início do século XVII, altura em que um grupo de jesuítas portugueses decidiu empreender a exploração de tão misterioso e surpreendente lugar.
Houve uma primeira viagem épica do Padre António de Andrade (Oleiros, 1580 – Goa, 1634), o primeiro ocidental a chegar ao Tibete em 1624. Como Superior da Missão do Mogol, deixou Agra acompanhado por Jahanjir, imperador mogol que viajava para Lahore. Em Deli, encontrou um grande número de peregrinos hindus que rumavam para o fabuloso templo, situado a quarenta dias de viagem. Esperando atingir o Tibete após visitar Lahore, António de Andrade, conjuntamente com o irmão Manuel Marques, começaram o seu caminho, conduzidos pelos “gentios”. A missão teve algum sucesso; foi construída uma pequena igreja na passagem e houve algumas conversões. No entanto, em virtude de um golpe de Estado contra a influência cristã, a missão foi destruída e os portugueses expulsos do país. Andrade deixou o Tibete em 1629 e foi nomeado provincial em Goa em 1630; retomando em 1633 o seu antigo cargo de Reitor do Colégio de S. Paulo em Goa. Em 1634 o padre Andrade foi envenenado, por uma intriga interna, na reitoria do colégio e morreu em 19 de março.
Outros padres abriram novas rotas, que levariam aos reinos de Sikkim, Nepal e Butão – este último percorrido por João Cabral (Celorico da Beira, 1599 – Goa, 1669) e Estêvão Cacella (Avis, 1585- Tibete, 1630). Os dois identificaram o mítico lugar de Shangri-La, bem como o lugar de nascimento do Buda Gautama. A busca do mítico reino do Cataio correspondeu à procura de um lugar onde existiriam cristandades perdidas – desde as planícies de Bengala ao interior do Butão. Contudo, não se confirmou essa presença familiar. No Butão, Cacella e Cabral encontraram Shabdrung Ngawang Namgvel, o unificador do reino, e no fim de uma estada de quase oito meses no país, o padre Estevão Cacella escreveu uma longa carta no Mosteiro Chagri ao superior jesuíta em Cochim. O relatório, A Relação, relativa ao progresso das suas viagens é o único relato de Shabdrung que nos resta.
A aventura dos jesuítas começou em Hoogly, junto a Calcutá, na Índia, de onde partiram os padres Estêvão Cacella, João Cabral, a 2 de agosto de 1626, vestidos de soldados, para melhor passarem despercebidos. Em Bandel, no bairro de Hoogly, cidade fundada pelos portugueses, encontramos uma Igreja dedicada a Nossa Senhora da Boa Viagem, datada de 1599. A peregrinação dos jesuítas rumou ao reino do Cocho, sendo feita pelo Bramaputra e seus afluentes, numa embarcação de tamanho considerável. Os padres transportavam vários objetos: designadamente os necessários presentes sem os quais nada se podia fazer. O destino seguinte foi Gauwathi, capital da província indiana de Assam, a atual Hajo, local de peregrinação para três confissões religiosas – budismo, islão e hinduísmo – então sede das terras do Senhor de Cocho (Cooch Behar). Os padres portugueses foram hóspedes de um rajá local, que os levaria mais tarde à presença do rei do Cocho. O famoso Bir Narayan recebeu-os com pompa e concedeu-lhes salvos condutos para entrada no Reino. A entrada dos jesuítas portugueses no Butão foi feita pela fronteira de Rangamati. Munidos das devidas autorizações de viagem e de um cavalo que lhes transportava a bagagem. Havia montanhas altíssimas e vales muito profundos. Ao fim de vários dias de caminhada avistaram finalmente a aldeia de Rintam. Ali residia um lama que, previamente informado da chegada dos portugueses, obteve autorização do rei do Butão, e conduziu-os a Paro, capital do reino. Cacella e Cabral ficaram maravilhados com o vale de Paro. Também a arquitetura local, assim como o peculiar ordenamento urbano, os impressionou. O padre Cacella foi o primeiro europeu a entrar no Butão e a viajar através dos Himalaias no Inverno. Foi também Cacella que, pela primeira vez, descreveu aos europeus um lugar fictício chamado Shambala (que significa “paz/tranquilidade/felicidade”). De acordo com o budismo tibetano este seria um país ideal localizado a norte ou oeste dos montes Himalaias: no século XX o mito inspirou James Hilton a escrever o romance “Horizonte Perdido”, inspirado em Shangri-La.
Recentemente, a RTP produziu, graças à coordenação do investigador Joaquim Magalhães de Castro, um conjunto de quatro programas sobre essa aventura fundamental, muito pouco conhecida, reveladora das rotas seguidas por um conjunto de intrépidos jesuítas portugueses do início do século XVII nos Himalaias. Tal série documental traduziu uma aventura de milhares de quilómetros através de uma das mais espetaculares e deslumbrantes paisagens do planeta. Terra de mosteiros, alta montanha, lagos de água cristalina e rotas de peregrinação lendárias, o Tibete continua a ser o mais misterioso e aliciante recanto dos Himalaias. Na Biblioteca de Thimpu, atual capital do Butão. o diretor da instituição, Dr. Yonten Dargye, revela a grande riqueza documental disponível para a investigação sobre as relações históricas entre Portugal e o Butão. Joaquim Magalhães de Castro visitou o mosteiro-fortaleza de Punakha, um dos edifícios mais significativos do Butão, sem esquecer o referido mosteiro de Chagri, o primeiro local onde os jesuítas foram recebidos pelo monarca, tendo-lhe estes oferecido armas, pólvora e um telescópio. Aí residiram, estudaram a língua local e tiveram autorização para difundir a fé cristã. É um local de meditação para os monges e destino de eleição para os inúmeros peregrinos que ali rumam ao longo do ano.