Já falámos de várias línguas e culturas. A língua materna, os crioulos, o mirandês… hoje vamos mais longe e chegamos ao Oceano Índico até às proximidades do Pacífico. Chegamos a Malaca e à língua franca de mercadores e missionários. Falamos do papiar kristang. Malaca é a guardiã do estreito, encruzilhada de muitas culturas e influências (hindus, chineses, malaios e javaneses). Nas viagens que temos feito ao encontro da nossa História, visitámos a cidade mítica com a erudição e o bom humor de Luís Filipe Thomaz. Foi uma imersão total no clima húmido e quente da Índias. A cidade data de 1403, começou por ser uma pequena povoação de pescadores e corsários e esteve sob influência portuguesa de 1511 a 1641. A imigração chinesa é intensa e muito evidente, dividindo-se entre uma vaga mais antiga, os babas e as nyonyas, do início do século XV, constituída por letrados e comerciantes, e uma segunda, mais numerosa, de agricultores, correspondente ao período da guerra do ópio e da colonização britânica, no século XIX. A história de Malaca é muito rica e é marcada pela situação estratégica da cidade como porto de abrigo e como centro de comércio. O célebre navegador chinês Zheng He aqui estabeleceu importantes contactos que levariam o rajá de Malaca a declarar-se vassalo do Celeste Império, sacudindo o jugo da antiga Sião. Quando Afonso de Albuquerque definiu este como um dos pontos cruciais do império português do Índico, com Goa e Ormuz, fê-lo conhecedor do grande valor da cidade e das possibilidades que apresentava como placa giratória para o Extremo Oriente. Já Álvaro Velho, no seu Roteiro, e Gaspar da Índia falavam da importância de Malaca, tendo incumbido o rei D. Manuel D. Francisco de Almeida da tarefa de «assentar trato em Malaca» e de construir uma fortaleza na cidade. Mas só em 1509 a armada capitaneada por Diogo Lopes de Sequeira atingiu Malaca, sendo primeiro bem recebida pelo Sultão, mas sofrendo depois a violenta oposição dos mercadores indianos do Guzerate. Afonso de Albuquerque delineará a tomada da cidade, reforçando a armada de Diogo Mendes de Vasconcelos, especialmente enviada para o efeito. Chineses e hindus tornam-se aliados objetivos dos portugueses, permitindo o domínio da cidade. Durante 130 anos os portugueses tornarão Malaca como o grande centro do comércio e o principal nó da rede marítima. Após a ocupação holandesa, uma parte da população irá para Macau ou para outros destinos na atual Indonésia, como a ilha de Java. E os fantasmas multiplicam-se.
A cidade atrai pela história riquíssima e pelos contactos culturais e económicos que se estabeleceram aqui. O Museu Marítimo ostenta como seu verdadeiro símbolo a nau “Flor de la Mar”, a mais rica e poderosa do seu tempo, que naufragaria no final de 1511, com Afonso de Albuquerque a bordo. E falar de Albuquerque é referir a figura controversa, com quem o rei D. Manuel tinha uma relação muito especial, até em virtude de ser um dos mais determinados apoiantes na defesa de um império de Estado, por contraponto à liberdade concedida aos navegadores para comerciarem, e ganharem influência e riqueza. Descobrimo-lo num momento decisivo da sua ação, no ano seguinte a tomar Goa e antes de avançar para o Golfo Pérsico e o Mar Roxo. E sentimos que as intrigas e as incompreensões de que será vítima têm sobretudo a ver com o grande debate que se desenvolve em torno de D. Manuel sobre o Plano da Índia e a estratégia do Oriente, se o domínio do Estado e da Coroa ou se a influência poliárquica dos mercadores. O certo é que Malaca foi um ponto nevrálgico (que Albuquerque bem entendeu) para o comércio das especiarias e para a administração imperial. A qualidade da Casa del Rio, um dos mais recentes hotéis de Malaca, é assinalável. É essencial o aprofundamento da cooperação luso-malaia, quer no domínio do património cultural, uma vez que a zona histórica está classificada pela UNESCO, quer no campo económico. A visita ao bairro português é motivo de especial de interesse. Da antiga fortaleza de Afonso de Albuquerque – “A Famosa” – apenas resta a porta da muralha, já que os ingleses não evitaram no século XIX a destruição do edifício militar, que muito se assemelhava à nossa Torre de Belém, como foi representado por Manuel Godinho de Erédia em 1604. É emocionante a subida até à Igreja do Monte, da Anunciação ou de São Paulo, onde São Francisco Xavier pregou e onde se encontra a pedra tumular de D. Miguel de Castro, filho de D. João de Castro. E encontramos os resquícios do papiar do século XVI, o kristang, a língua franca dos mercadores, que os missionários desenvolveram. No restaurante Papa Joe podemos provar uma canja divinal e usufruirmos de iguarias com o seu quê de familiar. E assim podemos ouvir o português das antigas canções tradicionais graças à comunidade de portugueses de Malaca. O papiar cristão, a língua franca do século XVI, não foi esquecido, apesar da distância e da história. A emoção liga-se ao entusiasmo e todos se envolvem na animação desta herança portuguesa. Muitas vezes perguntamo-nos o que significa no mundo das culturas da língua portuguesa a cidade de Malaca. Não se trata de uma mera referência vaga. É a expressão do património material e imaterial. É o encontro de uma pequena comunidade com a referência histórica que segue para Sul e Oriente, até Java, às Flores e a Timor, e ainda às Molucas e às Celebes. Eis por que razão Malaca não pode ser vista como um epifenómeno. Daí a necessidade de aprofundarmos as relações culturais e económicas com a Malásia. O que está em causa é a perceção de uma história dinâmica, que não pode ficar apenas no passado, devendo projetar-se no presente e no futuro. E fica a exigência de sermos mais atentos a esta referência da nossa identidade linguística e à comunidade de pessoas que a constitui. E uma vez que, como habitualmente, levamos connosco textos significativos – não podemos deixar de invocar Fernão Mendes Pinto, em Malaca, sempre ele. E se falamos de fantasmas, chegamos à alusão mítica e imaginosa de Sandokan, o Tigre da Malásia, não só por ele, mas por Gastão Sequeira, um português que simboliza os nossos mercadores e mercenários, que povoaram a Malásia, o Bornéu e as Molucas desde o século XVI. Emílio Salgari deu-lhe originalmente o nome de Ianes de Gomera, mas a linhagem portuguesa não oferecia dúvidas. E Mompracem, a ilha que Sandokan desejava ver livre do jugo de Sir James Brooke, era provavelmente Mangalum, nome derivado de Fernão de Magalhães, que aqui esteve aquando da sua visita ao Sultão do Brunei…. É o tempo dos fantasmas verdadeiros.