Abecedário da Cultura da Língua Portuguesa

N. Nemésio (Vitorino)

Num folhetim de fantasmas, Vitorino Nemésio não pode deixar de estar, como pensador da cultura na sua expressão mais rica. Nemésio não é, ele mesmo, um fantasma, é um genial criador de protagonistas que representam de forma suprema a vida humana… E de que falamos na História da Cultura? De continuidades e de mudanças, de características singulares e convergências, de identidades e diferenças, de desafios e respostas. Não se trata apenas de seguir os acontecimentos, mas de compreender a lógica sincrónica e a perspetiva diacrónica. Não basta um sobrevoo da cultura geral, que mais não significa do que um contacto vazio e superficial com a criação e a arte, esquecido do que avança e progride e do que estagna. Assim, no ensino da Cultura Portuguesa, António Manuel Machado Pires tem recordado a preocupação que Vitorino Nemésio tinha com os seus discípulos, no sentido de abrir as suas mentes, ligando e relacionando realidades aparentemente distintas: “E por ‘ligar as coisas’ deve entender-se ligar mesmo, não apenas somar conhecimentos: fazer relacionações entre conhecimentos convencionalmente arrumados em cadeiras diferentes, ligar uma romaria a uma feira, esta a um modelo de vida, este à evocação de um almocreve, este a Gil Vicente e por que não, a O Malhadinhas de Aquilino?” (Cf. “Luz e Sombras no Século XIX em Portugal” de António M. Machado Pires, INCM, 2007).

A cultura pressupõe diálogo e confronto, entre quem vê e tenta compreender e o que se pretende ver e entender numa relação sempre complexa entre a vida humana e a natureza que a rodeia. Daí a metáfora da varanda para ver a Cultura, tantas vezes usada pelo próprio Nemésio – “Varanda de Pilatos”. E quando voltamos a ouvir as charlas televisivas de Nemésio, “Se bem me lembro”, verificamos que estas corriam entre a intuição e a inteligência, entre a erudição e a capacidade de perceber o “mundo da vida”. Mau Tempo no Canal (1944) é uma obra-prima da literatura portuguesa. É marcante no século XX por pôr em destaque, de um modo original, a panóplia de elementos novos que se distanciam do romance oitocentista.

Segundo Miguel Real, em “Obras de Referência da Cultura Portuguesa”: «Mais do que um espelho dos Açores, Mau Tempo no Canal é, sobretudo, um espelho do fim de um certo Portugal, o Portugal do fim do prestígio dos nomes aristocratas substituídos pelos nomes dos “Garcias” comerciantes e procuradores; do fim de uma economia assente em agregados familiares, substituída por uma economia empresarial; do fim das famílias alargadas identificadas com uma quinta ou um palácio, substituídos pelos prédios de apartamento; do fim da carroça e do cavalo como meios de transporte substituídos pelo automóvel e pela camioneta; do fim do azeite, do petróleo e do gás como meios de iluminação, substituídos pela eletricidade; do fim da cultura própria das comunidades de pescadores de caça à baleia, substituída pela cultura migrante americanizada; do fim dos transportes marítimos de passageiros, substituídos pelo avião; do fim da ocupação doméstica das mulheres substituída pelas profissões femininas; do fim de uma sociedade hierarquicamente ordenada de um modo atávico em privilégios irrevogáveis de superiores e em obrigações sociais de inferiores, substituída por uma sociedade popular e de massas.

Toda esta atmosfera social e mental (prossegue Miguel Real) desenha-nos literariamente um Portugal do “fim”, fundamentalmente o Portugal do fim da Monarquia (os capitães-donatários, os barões, as vastíssimas quintas, as terras cedidas diretamente pelo rei a antigas famílias, que agora vendem a novos ricos, como a Ribeira dos Flamengos, dos Dulmo), mas também o anúncio do fim do Império, identificando-se os Açores com a nau de Portugal em deriva histórica no exato centro da imagem que tem constituído parte importante da nossa identidade cultural – o mar. Nada havendo já por descobrir e restando-nos a pulsão da “demanda”, as personagens revertem-se sobre si próprias, criando labirintos mentais monstruosos de saudade e desejo, não raro criando ou situações perversas (Henriqueta, Catarina, Diogo Dulmo, Ângelo…) ou situações trágicas (Margarida).

 … Mau Tempo no Canal é dos poucos romances portugueses do século XX cuja personagem central, Margarida Clark Dulmo, encontra-se esteticamente à altura de um destino trágico, não já da tragédia clássica – e por isso é também um romance do fim -, onde os deuses se conjuram contra a vontade humana, mas da tragédia atual, onde os desencontros, os acasos, as perfídias subterrâneas, as pequeninas vaidades humanas, desembocam na mais pura e inviolável das rotinas: a anemia social, a indiferença, a passividade, o absentismo e, sobretudo, a resignação e a renúncia ao sonho. Margarida acaba por se casar com André Barreto, salvando assim da falência e da ruína a casa dos Dulmos. Margarida levará uma existência rotineira, parasitária, uma existência vazia. É nesta ausência de futuro – que não seja o futuro do tédio – que reside o elemento trágico da existência de Margarida. Neste caso, a tragédia não resiste na vontade de lutar ou no desejo de desafiar, mas na sua renúncia e na consequente interiorização de um profundo luto pela vida que nunca se terá. Os títulos dos capítulos (“A Serpente Cega”, “Uma Aranha e uma Teia”, “Outra Aranha e Outra Teia”, “Mortos e Vivos”, “A Íris da Aranha”, “Cucumaria Abyssorum”, “As Aranhas Fecharam as Teias”, “Fogo”) geram desde logo a atmosfera de suplício e opressão social que forçará Margarida a desistir da sua vontade singular, conformando a sua “soberba” e o seu “orgulho” com os ditames sociais, resignando-se a um destino semelhante ao da mãe, reprimindo o seu desejo de viagem, de realização em Inglaterra, contra os preconceitos sociais. A tragédia – a pior das tragédias atuais – evidencia que, depois do seu casamento com André, Margarida não tem História, deixou de haver História para Margarida, estará viva para os filhos e para a sociedade e morta para si própria…»

Tantos fantasmas encontrámos já, mas neste caso Nemésio transforma as suas personagens em verdadeiros símbolos de um tempo que rapidamente se transforma… ao desenhar a figura austera de Alexandre Herculano e ao evocar o subjetivismo existencial de Margarida, Nemésio retrata o seu tempo, numa evolução rápida que o levará a si mesmo às fronteiras do surrealismo, bem presentes na sua poesia…

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